quinta-feira, 25 de março de 2010


O olhar que caminha
O título não se quer original. Faz parte do texto “No mundo da leitura: a leitura do mundo”, primeiro capítulo do livro “O jornal como proposta pedagógica”, de Joana Cavalcanti. Não é, nem seria possível ser original em tempos de pós-modernidades, tardias ou não. Paulo Freire já ensinou bastante, com profunda sabedoria, sobre a arte de bem se ler o mundo.
O que há de original neste texto que ora se insinua sobre o vazio que se segue em linhas e signos imprevisíveis é a disposição do leitor em prosseguir na sua leitura. É o momento mesmo em que seus olhos deslizam à procura de algo perdido no tempo, memórias ancestrais, talvez. Terras devolutas, quem sabe. Terrenos baldios, desses atravancados de ferro-velho, caixas de papelão, livros deteriorados, pedaços de canos, restos de carros enferrujados, panelas furadas, todo tipo de rejeito da insaciável oficina de consumo. Desses lugares que só meninos e meninas encapetados, afeitos a molecagens, conseguem ver e explorar. Nesses territórios malditos não se entra de sapato novo e engraxados, de roupa domingueira, branca e alvejada. De grifes exclusivas e excludentes.
Se o leitor se deixar levar pelo prazer do caminho, certamente irá descobrir, pelo desejo e pelo gosto de caminhar, motivos de sobra para continuar sua viagem pelo texto-vida que aqui se estica mundo a fora. Terá rara oportunidade de descobrir e recriar“cores, formas e imagens” , de sentir “cheiros, sons”, de tocar de pele a pele “ texturas” e, se for mais ousado que a média dos mortais, de ler grafismos, gravetos, gramados, garranchos, tudo que sob algum aspecto se assemelha a palavras, ao rastro dos bichos, dos signos na paisagem extensa e infindável. Mais profundas e atraentes, entretanto, são as paisagens humanas. Nem sempre amenas e amorosas. Agrestes e espinhosas, traiçoeiras e abissais muitas vezes. Escorregadias e evasivas, quase sempre. Saber percebê-las e cativá-las é arte para poucos. São mais comuns, nesses jogos, a conquista e o domínio. As gerações mortas já o provaram.
O olhar que caminha desenha percursos os mais diversos, conforme seja seu caminhar ardoroso ou frio. Varia se se desenha em si mesmo, em ritmo de caminhada sossegada em alguma manhã de sol ou no final de uma tarde de verão. Também será diferente se for um olhar solitário ou povoado de companhias amigas e galantes. Faladoras. De cima de uma bicicleta, de dentro de um carro, do trem-de-ferro, no metrô ou de avião, certamente os olhares se mostram diferenciados tanto pela angulação, quanto pela rapidez de seu deslocamento. Cercado pelas águas , de dentro de um barco, os olhos podem colher, aram horizontes e lembranças vickings sob o ondeante azul do céu. Mediatizados ou condicionados pelos óculos, pela lente da máquina fotográfica ou da filmadora, os olhares perscrutam visões e enquadramentos ainda mais diferenciados.Olhares que espiam pelas frestas das janelas ou pelos buracos de fechadura, à moda mineira, por certo herança portuguesa, não merecem tanta consideração.
Produtivos são os olhares ciganos, desses que pousam. Descansam sobre paisagens inacessíveis. Apaixonam-se pelo que divisa entre o permanente e o transitório. Dizem que olhares se parecem com espelhos de água. Há os rasos e lamacentos, os límpidos e profundos. Transparentes. Há olhares misteriosos e vagos. Fisgam. Fingem não ver, para olhar mais dentro e inquisidor.
O olhar que caminha não caminha só. Abre janelas ao vento, de par em par, em sucessões indefinidas, concêntricas. Leve, leva consigo a cultura e a história de seu portador, de sua gente. Mais, carrega dentro de si toda a herança acumulada desde a origem da raça humana. O olhar que caminha não enxerga o mundo tal qual. Percebe-o, apenas, em sutis e vertiginosas representações. São leituras atravessadas por histórias, lutas, guerras, romances, aventuras, descobrimentos, sonhos, projetos, sofrimentos, colonizações. Existem olhares livres e ou colonizados. Livres são os olhares que caminham por caminhos espontaneamente traçados pelo prazer de caminhar. Como diz o poeta “pelo caminho que se faz, caminhando”
O olhar que caminha livremente descobre mundos igualmente livres e lindos. Mundos falidos, lidos a caminho, de ida e volta para a escola, de passagem pelas avenidas da cidade em sossego noturno. Apaziguada em seus afazeres e posses pelas rezas na igreja matriz. Mundos virtualmente lidos e vividos. Mundos de caminhos reais. Leituras mais que decifração dos tristes códigos gravados a ferro e fogo nas páginas dos livros, na pele, no coração dos homens e mulheres, sobreviventes destes tristes trópicos.
O olhar que caminha decifra, inventa, recria e constrói novos mundos. Mira o olhar do tigre e admira a paisagem que nele se reflete. Simplesmente caminha da mesma forma que o tigre e nele se espelha, apesar das bibliotecas e dos livros esquizofrênicos. Desconfie, portanto, de certos livros. O olhar que caminha ama o que lê. Vive o tempo necessário para as leituras possíveis. Caminha solto entre signos ou sobre as florestas incendiadas salta. Aqui o caminhante se insinua em sombras entes de estender seus olhos sobre mapas mais distantes descansam. Estica-se na sala sobre os livros de sua predileção. O mundo da leitura e a leitura do mundo se confundem. Misturam-se a caminho. O olhar brilha.

sábado, 13 de março de 2010



ave palavra nossa de cada dia
pássaros sem pausas
pastos auríferos
sob céu de seda brotam
manso mistério de gado
em descanso de sombrs buritis
só asas cantam
de silêncio em silêncio se imiscui
fora da paisagem a poesia voa

sexta-feira, 12 de março de 2010



nada

nada aprendemos com a morte
no Calvário
no Horto das Oliveiras
não há choro
nada é necessário

a morte dos pássaros e dos rios
das geleiras e florestas
a morte dos peixes
dos bichos de terra firme
nada nos ensina
nem mesmo a morte de nosso melhor amigo
de um parente mais próximo
dá-nos algo essencial
sobre a vida precária
a que em nós teima em resistir
por insistência do corpo provisório
castigo do espírito insaciável

à todas as mortes assistimos
impávidos e inertes
entre omissos e impotentes
mas avenidas e estradas
nos templos e cavernas
nas arenas e super-mercados
nas fábricas e estádios
como se assiste a um ritual de magia
a uma luta de serpentes
a um programa imbecil de TV

a notícia da morte por e-mail
se mistura a imagens de catástrofes
e “spans” de mal gosto
a comentários políticos e inócuos
sobre o cotidiano de um herói sem caráter
de um país sem imaginação

a tudo se iguala a Tal
sem rosto
em consórcios de consumo
sem perceber nos consumimos
em espetáculos sucessivos e recorrentes
sob rótulos e slogans
os mais diversos e eloqüentes

nada aprendemos com a morte
alheia
por mais estúpida e feia
estampada nos jornais
na Internet
com as mortificações globais
menos ainda aprendemos
com a mobilidade das nuvens
com o discurso dos sobreviventes
no percurso de nossa própria morte

nada aprendemos com a morte

domingo, 7 de março de 2010


No Dia Internacional da Mulher....resolvi brincar com o Chico Buarque e escrever uma cação como se...vejam como ficou:A melodia ainda está a caminho.

súplica

olhem para mim
vejam nos meus olhos
tudo o que existe
tudo o que puder
sentir
mais dentro de mim
onde ninguém vê
mora um querubim
dói só de pensar
na dor
no dom de ser mulher

vejam quem sou eu
vejam onde estou
o que se perdeu de mim
por onde passei
ninguém chorou
por mim na TV
eu cai na vida
sou a mãe da vida
estou sem saída
estou de partida
sem saber quem sou
para onde vou

olham para mim
como se eu fosse
sala de visita
capa de revista
um cartão postal
uma presa fácil
um falso rubi
ágil no que faço
dócil na conquista

sou admirada
mais que uma estrela
sou mais desejada
sou mal entendida
pelo que prometo
pelo que espero
pelo que revelo do amor
em nome da vida
ao longo da estrada
nas marcas de meu corpo
em meu próprio espelho
estou dividida