sábado, 17 de fevereiro de 2007

Triálogo I

Do prazer de voar com o livro
ao imaginário museu de tudo


A vantagem de vir ao mundo, após milênios de história, é já encontrarmos o mundo bastante modificado pelo engenho e arte do homem. Impossível seria enumerar essas modificações. Além do fogo, das pirâmides e dos Jardins Suspensos da Babilônia, pode-se, sem medo de erro, incluir a água potável, o avião, a penicilina na galeria das invenções. A metafísica, a literatura – a poesia - a física mereceriam lugar de destaque. Para os mais radicais e intolerantes, esclareço que usei a palavra metafísica como metáfora de Filosofia. Sei que não se trata de um conceito exato, mas como não posso detalhar, aqui, os meandros da história do pensamento humano, desde antes dos gregos, resolvi correr o risco da imprecisão. Funciona como um buraco para puxar assunto. Nem sempre dá certo, mas...
Para simplificar talvez fosse aconselhável buscar a raiz de tudo o mais.Ressaltaria, neste museu, apenas a palavra, a linguagem, os signos e as imagens de toda a arte e conhecimento construídos pela humanidade. Incluindo aqui as ruínas e as desconstruções. O que já foi feito e o já desfeito. O que existe, teima em resistir. Aquilo que existirá e o que será impedido de existir. Seria justa e razoável esta opção, pois, sem dúvida, a linguagem está na origem e na trajetória de toda a História do homem. Não a linguagem abstrata, mas o que desta linguagem floresceu dentro e fora do coração do homem.

Que o leitor não se zangue pela minha última escolha. Junto com as cerâmicas primitivas, as telas dos pintores e dos poemas e músicas , de todas a s raças e gerações, colocaria sob luz clara um objeto admirável e único:o livro. Pasmem aqueles que não descobriram, ainda, o sagrado hábito da leitura. Aqueles que, ao invés de bibliotecas, constroem suntuosas garagens. Sei que muitos pesquisadores e futurólogos alardeiam a morte do livro, o seu fim como instrumento e objeto de mediação das trocas, do prazer e do conhecimento. Ao contrário, imagino que o ambiente contemporâneo é espaço fértil para abrigar todas as formas de fazer e de saber. Cenário móvel capaz de estimular a convivência dialogada entre diferenças e pluralidades. No campo midiático, a despeito de suas especificidades, não acontece de outra maneira. Veja um exemplo singelo. Não estou aqui, agora, escrevendo a favor do livro, um texto no computador que será veiculado pela rede e quantos livros já surgiram e surgem a todo instante falando sobre a sociedade da informação e do conhecimento.
Ah! O museu. Boa lembrança esta de se criar um espaço bem atraente para se colocar nele todos os depoimentos e argumentos escritos ou gravados a favor deste objeto sedutor, ao mesmo tempo, esquivo e silencioso. Em defesa do livro saíram filósofos,escritores, cientistas, poetas, compositores. Juntos, formariam um belo acervo.
Crítica arguta, Susan Sontag observa que entre livro e leitor há uma relação de desejo. Além do conteúdo, da edição, da encadernação, da ilustração ou do papel, observa a ensaísta/leitora/autora, o livro exerce sobre os seus leitores aquilo a que poderíamos chamar uma verdadeira aeração física. É, portanto, objeto de cuidadoso carinho. Falando sobre o ato de ler, Michel Foucault coloca o livro como o ponto onde se inicia o processo de transformação e de enriquecimento do leitor “Trata-se, particularmente, de interrogar nossa relação com o livro, com a obra”.
Se se considerar o livro como a imagem que comporta e transporta a linguagem, é justo apropriar-se do que fala Victor Chklovski , aludindo a um tipo especial de imagem relacionada à arte: “o objetivo da imagem não é tornar mais próxima de nossa compreensão a significação que ela traz, mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão, e não o seu reconhecimento”
Tudo sugere que o livro, a despeito de sua grandeza na constelação do saber, não existe por si só. Dentro e em torno dele gravitam não só idéias e imagens verbais e não-verbais, mas mundos reais e imaginários, personagens e geografias, autores, editores, leitores. Com estes últimos o livro e a leitura representam possibilidade reais para se criar laços através de uma relação de prazer e de liberdade. Os homens passam, o livro-pássaro,poderíamos parafraseando, reverenciar o para sempre adorável Mário Quintana. Para Borges, o encontro entre o livro e o leitor dá origem a um “faro estético”.
“Mudamos incessantemente e é possível afirmar, com Borges, que cada leitura de um livro, que cada releitura, cada recordação dessa releitura renovam o texto. Também o texto é o mutável rio de Heráclito”.
E Ramón Gómez de La Serna, nas suas Greguerías dizia:?O livro é um pássaro com mais de cem asas para voar?. Temos apenas de saber potenciar o seu vôo... Este o desafio: criar asas feitas livros e voar com eles, sem perder a direção da Terra. Da linguagem, a casa de todos, do mesmo e infinito livro.

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