terça-feira, 18 de novembro de 2008







A educação pela Viola Caipira
Seis imagens sonoras de Minas

João Evangelista Rodrigues
O concerto VivaViola apresenta seis compositores e intérpretes da autêntica música de raiz, os violeiros Pereira da Viola, Chico Lobo, Wilson Dias, Bilora, Joaci Ornelas e Gustavo Guimarães. Instrumento fundamental na formação da identidade cultural de Minas e do Brasil, a viola continua presente nas festas religiosas e nas manifestações populares. Após um período de ostracismo, relegado a segundo plano, ressurge a partir dos anos 80 com toda a sua força e importância, reconquistando espaço na mídia e no mercado fonográfico. A viola está na moda, com todo respeito ao trocadilho.

“Uma educação pela pedra: por lições;para aprender da pedra, freqüentá-la;captar sua voz inenfática, impessoal(pela dicção ela começa as aulas).”
João Cabral de Melo Neto
O que pode nos ensinar uma pedra. E a viola, nos ensinaria alguma coisa? Bem, não seria totalmente correto afirmar que a viola caipira (dez cordas), à maneira do avião, foi inventada por algum gênio brasileiro. O que a maioria ignora ou finge ignorar, por conveniência ou preconceito inerente a um certo tipo de saber estabelecido e hegemônico, é que este instrumento foi e continua sendo o que mais fielmente traduz o sentimento, a alma e o saber do povo brasileiro, sobretudo do homem rural.

Desde que chegou ao Brasil, por volta de 1500, trazida pelos Jesuítas e utilizada na catequese dos índios, a viola permanece viva. Não é exagero afirmar que, ao chegar no Brasil, ela desempenha uma nova função: a de seduzir, conquistar e educar pessoas através de sua sonoridade particular e singela. Pode-se falar, então, parodiando o Poeta Pernambucano, de uma educação pela viola. Seja por sua capacidade de reunir pessoas, de sensibilizar mentes e corações, seja pela força de seu sotaque ao mesmo tempo mágico e realista.

O Violeiro e compositor, Wilson Dias, explica: “assim que foi semeada em solo brasileiro, a viola foi passando por diversas transformações. Através da miscigenação de raças, veio a ser a fiel companheira do "caipira", o homem do campo. Tornou-se, portanto, um instrumento de extrema importância cultural. Por toda sua história e pelo seu potencial inventivo e mobilizador de sentidos e sentimentos, a viola não passa despercebida. Faz parte da história do Brasil!”. Nem mesmo o ambiente pós-modrnizante e o alarido violento e ensurdecedor do neo-liberalismo, conseguem calar sua voz. A linguagem da viola, em sua diversidade, sobreviveu e se faz ouvir atualmente não só pelo conteúdo das mensagens veiculadas, mas devido a sua natureza afetiva e solidária. Ora discreta e piedosa, ora combativa. Ao longo do tempo, a viola vai cumprindo seu papel. Desperta o pendor artístico. Desbrava sertões. Acalma o espírito. Reúne o povo e ponteia suas esperanças. Canta e protesta conforme a hora seja de festa ou de luta. Está presente sempre que é convidada, melhor dizendo, convocada para defender a vida em suas mais diversas formas de manifestação. É pela viola que o cantador e compositor Pereira da Viola se define. “sou daqueles violeiros que, através do suporte histórico e sonoro da viola, grita por justiça, fala das questões que afligem a humanidade. Meto o dedo nas feridas de forma clara e sem medo. Por isso acho que a viola, pela sua história, pode ser também entendida como uma aliada no processo de transformação social”.
Assim como na América Latina, África e Caribe, o Brasil está passando por um momento de intensas transformações político-econômicas e socioculturais. Esse é um processo global que afeta, negativamente, sobretudo os países menos desenvolvidos aprofundando de maneira irreversível problemas históricos. Faz-se necessário, neste contexto, que a autêntica música de viola esteja inserida neste processo, como um dos principais pilares na formação cultural da nossa sociedade brasileira, completa Pereira.
Cinema sonoro

“No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse não ensinaria nada;lá não se aprende a pedra: lá a pedra,uma pedra de nascença, entranha a alma.”
João Cabral de Melo Neto
A educação pela viola, à maneira da pedra, se dá “de dentro para fora e pré-didatica”. Isto acontece no mais longe. Na intimidade mesma das casas, das coisas afastadas. Lá onde residem os mestres, os menestréis de antonce. Os cantadores de fibra. Afiados de palavra. Afinados dos instrumentos, todos da vida natural, feito igual ao que na pedra a faca se afia. Feito o que no tear se fia. Os que sem aprendizagem prévia, sabem. Por intuição. Por descoberta. Por sabe-se lá que sortilégios da sorte. Por engenhos de fé ou de precisão mais insatisfeita e essencial de necessidade humana primordial de se comunicar, de se descobrir e descobrir o mundo, o sentido das coisas ao seu redor, dos outros seres. Seja bicho ou homem. Seja planta ou ave. Seja água, fogo ou pedra. Tudo que, quando se tem verdade, cabe com justeza e estilo peculiar no som, na voz e nos acorde de uma viola de boa herança e procedência.

Assim, ouvir uma boa música de viola, no melhor estilo de nossa tradição, é ver. Olhar de perto as coisas. É observar e degustar o mundo em constante movimento. É viajar e desfrutar sons e sabores. Gestos e semblantes. Conhecer lugares e mistérios. O vasto mundo real e imaginário que, sendo imaginário, é mais vasto ainda. É fazer ou assistir a um cinema sonoro. Um filme incomum, povoado de imagens e de sombras. De luzes vindas da memória. Da tradição e da vida cotidiana. Das conquistas, perdas e danos do povo brasileiro ao longo de mais de meio século de história.

São cenas e cenários de muitas Minas, de vários mundos, de um país interior e anterior. Por isso, à frente de toda crise e pessimismos é preciso cantar, encantar, decantar o sobre nuvens. Desvelar o sono mineral das coisas insignificantes. Dar-lhes luz e cor, conforme seja o tom e a densidade da voz, da letra musicalizada. Viola signo sonoro. Imagem da vida. Cinema do cotidiano. De minha parte, sinto-me contente de participar deste movimento a favor da viola caipira nas diversas formas de ação: estudo, pesquisa, articulações e produção de eventos. Agrada-me a convivência com tantos artistas dedicados a esta questão e, sobretudo, a oportunidade de mostrar uma vertente de meu trabalho poético através das muitas parcerias que faço com eles. É o caso deste histórico concerto no qual serão interpretadas “Sem Desatino, feita com Pereira da Viola; Brasil Festeiro, com Wilsom Dias, meu mais novo parceiro, e Moda de Viola, com Joaci Ornelas.

Cena 1- O cantor Wilson Dias vê na viola poderes curativos. Uma forma de aliviar os males da alma brasileira. No Vivaviola, apresenta a composição inédita, “Brasil Festeiro”.
Segundo Wilson Dias, Brasil Festeiro é o retrato do País em que acreditamos. Foi feito exatamente parar ajuntar a viola e o tambor: dois instrumentos representativos da cultura brasileira. Parte da mesma cena é “Canção de Siruiz” – composta a partir de um fragmento do livro ”Grande Sertão Veredas”, de João Guimarães Rosa. Nela, o violeiro descobre territórios invisíveis. Ouve o som misterioso do sem-lugar das Gerais.

Cena 2- O cheiro dos raminhos de alecrim anuncia a presença do violeiro, cantador e compositor Chico Lobo, que apresenta um “catira”, música de sua autoria gravada no seu primeiro cd, “No Braço Dessa Viola” que lhe rendeu uma vitória significativa: ser um dos três finalistas no Prêmio Sharp, como revelação da Música Regional Brasileira.
Segundo Chico, esse é o momento para dividimos o palco e a vida, já que estamos na mesma estrada. É hora de unir nossas vozes para relembrar histórias, celebrar nossas conquistas e reinventarmos nossas utopias. Apresenta também “No Braço Dessa Viola” que segundo Chico resume todo seu trabalho neste refrão: “Ê viola que trago no peito/Ê viola meu pai que me deu/Pra cumprir a folia da vida tomara Deus”. Não é bonito? Termina o cantador tirando seu chapéu.

Cena 3 – Caminho de chão batido. Um homem descalço anda devagar. Observa a paisagem. Cisma de pássaros a vida. Segue curvado ao peso de sua bagagem: coisas, idéias, lembranças, desejos e sofrimentos acumulados ao longo de toda uma existência. Um cavaleiro vem pela mesma estrada empoeirada em direção oposta. Ao se aproximar, afrouxa a marcha de sua montaria. Apruma-se no arreio e fala com voz pausada: “Pois sim, senhor”. Silêncio. Sem desatino, a jornada segue.
É sem desatino, mas com destino certeiro que Pereira da Viola abre seu sorriso. Solta a voz e canta “Sem Destino”. Não se esquece, ainda, de despertar da Menina Flor, que dorme e sonha, dentro de um caixão de ouro, no fundo de um rio encantando. Canção feita em parceria com o menestrel cantador Josino Medina.

Cena 4 - O interior “ouvisto” através da música de Gustavo Guimarães. Violeiro consciente de sua missão e sincero no que faz. Em breve estará lançando seu primeiro CD “Vaqueiro”. Este trabalho é todo autoral e foi cuidadosamente produzido. Neste concerto Gustavo canta "Boi de Santana”, composta em homenagem à cidade de João Pinheiro, onde o artista cresceu. Fala um pouco da história do lugar, que antes era conhecido como Santana do Alegre. Dizem que o lugar recebeu esse nome por causa de um boi de nome Alegre que todas as noites mugia vagueando pelo arraial. O mugido do boi, conta Gustavo, deixava a população admirada, pois, ao mugir, o boi Santana parecia cantar. Já na música "A voz do Rio" reporta a uma cena mais triste e realista. É um apelo ecológico a favor do sofrido Rio das Velhas.

Cena 5 – O Sol quente do Norte de Minas invade o palco. Bilora toca seu “Calango na Cidade”. Esta música lhe valeu 30 prêmios em festivais da canção, realizados em diversas regiões do país.” Esta composição, segundo Bilora, representa um dos melhores momentos de meu trabalho musical”. Interpreta também “Toada do Amor”, de sua autoria.
Bilora nasceu na beira do Córrego do Norte, Vale do Mucuri, município de Santa Helena de Minas. Cresceu em contato com a cultura popular. Ouviu batuque e folia. Recebeu influência do universo caipira pelo rádio. Com estes elementos que foram zelosamente cultivados vem tecendo a história de sua vida artística.

Cena 6 – Um poeta sofre em solidão suas dores de vida e de morte. Agoniado pede um amigo violeiro para cantar uma moda de viola que possa aliviar a dor que arde no peito. Mas que moda seria esta capaz de aplacar esse mal sucedido? Seria uma moda de viola bem caipira? Seria uma moda que brota de dentro da alma? Nesse caso o remédio foi “Moda de violeiro”,uma pungente evocação de um profundo sentimento. Ornelas é cantador de paisagens sertânicas e ressonâncias renascentistas. De voz sincera e alma desprendida, mas comprometido com a historia de sua gente. Nesta mesma cena, Ornelas canta a saudade de um amor de longe, na cantiga “Coqueiro vai”, um canto de tradição popular e recolhido em versos por Guimarães Rosa e adaptado por Josino Medina.

Fim- Ouvir uma boa música de viola exige, em alguns momentos, concentração e disposição de espírito. Só assim o espectador pode empreender viagens sonoras e rítmicas. Descobrir e usufruir novos universos. Distantes e distintos. É que a viola caipira, de dez cordas, possui magia própria. Eleva o espírito. Amplia a percepção. Educa a sensibilidade. Aprimora o gosto. Não importa se fala de temas comuns e cotidianos. Se fala do amor, da vida na roça, da natureza, ou se conta uma história acontecida ou inventada. Quando cultivada com maestria e sinceridade, a viola sempre toca o coração e a mente das pessoas. Vivaviola. Seis imagens sonoras. Viva os violeiros de Minas. São cenas. Cenários. São sons. Só sombras são.