quarta-feira, 13 de julho de 2011


O Navegador De Palavras

Se o leitor se dispuser a viajar comigo por essas rotas perdidas no interior desta página, poderá ajudar-me nessa tarefa: encontrar Marco Polo. O pouco que sei dele, chegou-me pelo mar da linguagem e, para ser sincero, não disponho de nenhuma pista mais segura. Nunca vi sua foto . Pelo menos disto não tenho lembranças. Ouvi dizer que ele deixou muitas cartas e anotações, porém juro que não tive acesso a nenhum tipo de memória desse navegador inteligente e intrigante. A não ser, alguns livros que comprei no antigo sebo da esquina, transcrições de transcrições, cuja veracidade é sempre bom por em dúvida.
Dele, sei apenas o que me contaram alguns igualmente viajantes. Náufragos, talvez, de navios pertencentes à sua misteriosa esquadra. Também não arrisco desenhar seu perfil, uma vez que, com o passar do tempo, sua sombra, projetada naquela praia deserta já deve ter se desmanchado quase que por completo. Portanto, se depender destes sinais, teremos pouca chance de encontrá-lo. A não ser embalsamado em alguma biblioteca. Emparedado entre as letras dos livros ou perdido no labirinto de imagens e manuscritos.
De minha parte, prefiro imaginá-lo numa destas cidades ensolaradas, descritas por outro navegador italiano. Refiro-me a Ítalo Calvino que, pelo que parece, era de Marco Polo íntimo conhecedor. Chegou mesmo a reinventar suas histórias e suas aventuras pelas inúmeras cidades que Polo conhecera. Como não estou muito preocupado com as datas e mapas, também invento minhas geografias.
Tenho de palpite, quase certo, que Marco Polo, neste momento deve estar em algum ponto esquecido do Universo. Em alguma cidade portuária. Daqui posso vê-lo atento e minucioso aos detalhes de cada ângulo da paisagem. Seus olhos estão faiscando de felicidade porque acaba de fazer um bom negócio. Retorna ao seu navio, depois de um encontro na qual ele conta suas aventuras de maneira brilhante. Não por vaidade ou para se gabar de sua erudição, mas principalmente para criar um ambiente propício à conversa, à troca de informações. Na verdade, pelo que dele me contaram outros, que por sua vez, também de outros ficaram sabendo, Polo estava mais interessado era em ouvir. Ele queria conhecer a história e os costumes daquelas terras exóticas pela boca e pelos gestos de seus próprios interlocutores. Trocar produtos era apenas uma desculpa. Na verdade, vendia idéias, palavras, poemas, romances, desejos, fantasias e imaginação. Era com esses objetos invisíveis que ele conquistava seus anfitriões, fossem eles reis, sacerdotes, comerciantes, cidadãos comuns, sábios ou, simplesmente, vagabundos. Polo sabia do que era capaz a linguagem, por isso foi escolhido pelo rei. Era pago para viajar e para falar. O que, naturalmente, implica ouvir. No que ele também era sábio e paciente nessa arte.
Tanto divagamos e nos divertimos com o movimento do mar e das gaivotas que acabamos por perdê-lo. Ainda a pouco, ele estava sentado numa taberna. Talvez tenha desaparecido entre os rostos anônimos da multidão do mercado. Isso parece impossível, Polo tem semblante forte que dificilmente desapareceria de nosso pensamento como por encanto. Além do mais, todos o conhecem nestes cais de porto, povoados de navios e bandeiras coloridas de todas as partes do mundo, fedendo a peixe, com todo tipo de negócios escusos. Estranhos navios carregados de palavras, de mercadorias, as mais diversas, e objetos de arte.
Não sei se vocês perceberam. Polo é tão envolvente que, falando dele, esquecemos de falar da cidade onde ele deve estar neste momento. Cidade da qual não sei nem mesmo o nome. Talvez Alcídia, Selênia, Cecília. Quem saberá? Bem que poderia ser Rosana. Não, esta tem um sabor italiano e, pelo que não sabemos, Polo deve estar do outro lado do mundo. Esteja ele onde estiver, vá para onde for, tenho certeza de que qualquer dia desses o encontraremos. Polo, em carne e osso. Aqui, bem à nossa frente. É navegando por estes territórios desconhecidos, acima e abaixo destas florestas de água, que haveremos de encontrá-lo.
Quem duvidar, que vá até a biblioteca e fique lá, o tempo que for necessário. De olhos fechados e coração aberto. Pode ser que uma figura misteriosa lhe toque os ombros. Não se vire. Apenas ouça as histórias que ele quiser lhe contar. Apenas deixe sua imaginação viajar navios de fogo. Deixe entrar um raio de sol daquela cidade grega onde agora, com certeza, nosso companheiro de viagem acaba de desembarcar. Espere até que a noite fique mais densa e engula a cidade. Cubra-a de silêncio de tal modo que possa ouvir a respiração dos barcos e o arfar dos homens e dos peixes. Quando acenderem as primeiras luzes, entre com ele no grande pátio, à direita do jardim de rosas vermelhas encarnadas por onde passeiam mulheres e crianças. Apenas ouça a voz do rio Amazonas no interior de seu corpo. Depois parta em sua própria embarcação. Cheia de esperança e de palavras incendiadas. Esqueça o porto. A esquadra. A tripulação.
Há mesmo quem diga que Marco Polo nunca fez viagem alguma. Talvez tenha apenas compilado papiros e alfarrábios de tempos imemoráveis no conforto de uma biblioteca clandestina. Não se importe muito com estas versões e inversões históricas. Elas sempre acontecem e, a cada época, a verdade assume novos ares, de acordo com o humor e a seriedade dos pesquisadores. Desconfiar da história oficial, pelo menos à primeira vista, não é só um sinal de prudência, mas principalmente de sabedoria. O importante é você acreditar no que está fazendo, no caminho que escolheu em sintonia com seu desejo e sentimento.
Se seu desejo é encontrar Marco Polo, não desanime. Vá em frente. Esqueça a última porta por onde passou. Invente novos horizontes e não se preocupe comigo. Estarei bem, onde quer que esteja. A linguagem é meu norte. Minha forma de viver e dar notícias sobre a vida que, a cada instante, se abre, independente de nós mesmos. A vida e a morte juntas .Coladas como o sal e o mar. Talvez nunca serei feliz. Mesmo assim, continuarei tentando encontrar o verdadeiro Marco Polo. O que caminha comigo, acima e abaixo destas páginas, na solidão de cada sílaba. Nestas florestas de água, verdadeiro labirinto de espelhos e de palavras, cuja superfície infinita sempre e muitas vezes nos confunde.
Sobre o papel em branco ou no computador, a escrita é sempre um rasgo misterioso, uma ferida, sendo suja de sangue. É sempre alguma coisa que marca e delimita pontos geográficos até então inexplorados, com piquetes e bandeiras muito íntimas .Signos de pessoalidade ,possibilidades de comunicação, nem sempre concretizados. Mesmo no computador, no seu rosto liso de vidro, sobre seu corpo tecnologicamente tido como frio e neutro, a escrita emana raios de luz , aquece a madrugada, envolta em si mesma e recoberta por uma cortina de letras , cuidadosamente tecida e projetada à guiza de perfeição e imortalidade. Pura solidão. Neste momento , a escrita insurge de sangue o horizonte longínquo no qual se insinua , timidamente, mas com determinação, o que se pode chamar de escritor. A doença da escrita, violação e conquista, sedução e entrega, torna este sonho realidade. A vidaescreve a si mesma, bordando e transbordando de seu próprio tempo. O templo da escritura profana, sagrada apenas no momento em que da solidão do branco ou da tela do micro se emerge. Cumpre seu destino macrocósmico. Fabrica com letras entrelaçadas redes de sentidos, de sentimentos e razões, muitas vezes incontroláveis. Mas o texto mesmo e este empenho permanente de a tudo dar forma e destinação ,mesmo quando se sabe que essa forma e esse destino sempre escapam das mãos do escultor, do escritor, do digitador, do operador/agitador da complexa máquina do mundo, da qual o escritor também é uma letra igualmente indecifrável. Enquanto não se devora em dúvidas e lamentações, escreve. Inscreve-se no último círculo do horizonte inatingível, tingido de sombras, contra as ruínas das montanhas. Montanhas de pedras, de resíduos, de sucatas, de leis, de inutilidades , de linhas e limites. De livros. O próprio mundo, um livro. O único ser vivo, úmido de sentidos, ainda sem título.

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