segunda-feira, 14 de agosto de 2006



Proibições da Liberdade

A força semântica e histórica de certas palavras sempre me chamou a atenção. Liberdade é uma delas. Não sei de exato, quando a vi ou a ouvi pela primeira vez. Mas sou capaz de descrever, sem exageros, o brilho de meus olhos e a alegria que invadiu meu coração ao me dar conta dela. Sua forma aberta e clara, sua beleza gráfica e sonora, escondiam tudo que alguém podia desejar. Pronunciá-la era quase um ritual. Privilégio de quem se esforçava, cotidianamente, para dar sentido à vida individual e coletiva.

Às vezes, ocorria-me ficar longo tempo olhando seus olhos grandes na página branca do livro. Até hoje não entendi bem o que se passava. O certo é que esta palavra possuía um brilho particular. Era a mais fulgurante de todo aquela multidão de sinais, dispostos segundo uma ordem predeterminda ao longo do texto enorme e entediante. Destacava-se. Absorvia-me. Carregava meus sentidos no seu dorso para os lugares mais longíquos e altos da imaginação. Era realmente uma palavra rara, no dizer e no viver, a Liberdade.

À medida em que o tempo foi passando, esta palavra começou a aparecer com mais freqüência. Agora, já era possível vê-la nos muros da cidade, nos pára-choques dos caminhões, nas músicas de gosto duvidoso, no comércio-jeans. Quanto mais escassa ficava a liberdade política nas páginas anti-históricas do país, mais esta palavra aparecia estampada, estilizada pela moda, no peito, na indumentária juvenil.

Banalizara-se, de vez, a liberdade. De tal forma que, pouco ou nada, significava sua presença, dita, escrita, ou, aos quatro ventos, proclamada em alto e bom som. Esvaziada de seu significado original, ali estava a“liberdade” na vala comum das pobres e mortais palavras humanas. Sem vida. Sem humanidade.

E foi assim que, entre nós, brasileiros desse fim de século, “liberdade virou prisão”. Artifício retórico. Ornato falso de discursos descomprometidos, alienantes e manipuladores.

O quadro de degradação e corrupção da palavra - desta palavra particularmente - é tão grave que, não seria exagero exigir uma CPI da Liberdade. Para isso seria necessário remover as traças dos arquivos públicos, alterar a rotina das salas dos museus, romper o sossego das bibliotecas bem comportadas, vasculhar jornais e livros didáticos. Nem mesmo as cartas dos amantes mereceriam sigilo no trabalho para restaurar a paixão pela liberdade.

Como se isto não bastasse, será necessário também remover os detritos, curar as erosões, eliminar os dejetos urbanos que comodamente se alojam no corpo desse vocábulo.

Tornam-se, então, cada vez mais urgentes, algumas proibições, que garantem o uso livre e transparente da palavra liberdade. Explicando melhor, essas recomendações valeriam, pelo menos, no território mineiro, onde a liberdade nasceu de terra fértil, de lastro aurífero autêntico. Onde, depois esquartejada, cresceu e se multiplicou com maior vigor e determinação histórica. Liberdade, palavra sem mácula, água cristalina, diamante em cachoeiras de sentidos. Altissonantes e infinitos.

Sendo assim, pelo menos em Minas, ficaria expressamente proibido o uso da palavra Liberdade nos discursos políticos, nos comícios públicos, no plenário e nas assembléias, nas defesas de teses utilitárias, nas campanhas publicitárias e salariais, nos sermões dominicais, nos tratados de marketing, na verbosa e discursiva poesia ufanista e panfletária. Que não se use em vão este santo nome, nem mesmo nas ingênuas declarações amorosas.

Parágrafo único: fica vedada seu uso , por mais dois séculos, até que, em repouso, decante no fundo destes vales e montanhas, no leito dos rios, das represas e lagos, na solidão das veredas, toda imundície, toda leviandade, toda malidicência, toda perversidade que, ao longo do tempo, foram intencionalmente ou não agregadas em seu corpo.

Talvez, assim, após longa espera, esta palavra ressurja da boca de fogo do Alferes, com força cósmica e criativa. Palavra límpida, depurada. Encantada. Decantada. E com asas coloridas cubra, novamente, o mapa de Minas e anuncie, com seu canto de guerra ou de paz, novas manhãs mais claras e promissoras. Liberdade, palavra sem mácula, que no terceiro milênio, seja mais livre. Encarnada pelo sangue da vida, maior poema.

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