segunda-feira, 22 de janeiro de 2007


Balada de despedida ou uma
Crônica pela morte desejada

Não raro a cidade se assusta. Leva um choque. Para; Respira fundo, entre estarrecida e judiciosa. E não é para menos, pois, se notícia boa corre, notícia triste, voa. Isto acontece com mais freqüência do que se imagina. Quando, por exemplo, alguma pessoa - criança, jovem, adulto ou idoso, masculino ou feminino, rico ou pobre - despede-se desta vida, inesperadamente. Inexplicavelmente.

Nestes casos extremos, amigos, vizinhos, parentes próximos e distantes manifestam-se. Fazem-se presentes e solidários. A curiosidade e a indiscrição, entretanto, não sossegam o facho. Sussurram. Perguntam. Discutem. Levantam-se hipóteses as mais mirabolantes. Já o morto nada pergunta. Nada mais deseja, além do direito ao abandono e ao sossego. Ao esquecimento do corpo em leito sem amor. Sem compartilhamento.

Diante da morte, banalizada como está e, por isso mesmo, fator de banalização da vida em seus diversos níveis e aspectos, sabemos, é inútil, qualquer palavra. Tudo o que se disser, inclusive neste texto, não passa de conjecturas humana. Tardiamente formuladas. Mesmo assim, insiste-se, insistimos em falas, mesmo sabendo-as vazias de sentido, sem nenhuma repercussão, pelo menos no reino dos mortos.

Entre tantas falas perdidas no silêncio da casa, do velório, do cemitério, algumas podem assumir formas objetivas de questionamentos e preocupações subjetivas, particulares ou coletivas. Excluo, aqui, intencionalmente, questões cujas respostas levam em conta crenças religiosas, sejam elas quais forem. Este é fórum íntimo, sobre o qual não se deve interferir.

Prefiro olhar a questão da “morte desejada” ou mais diretamente, do “suicidio” de um ponto de vista humano, social e político. Poderia acrescentar poético, já que a poesia, em qualquer de suas fases, possui algo de religioso e místico, sem confessar fé, fidelidade, em nenhuma crença religiosa específica. Em nenhuma forma de poder. Este olhar sobre a morte, sobre a morte procurada através do suicídio, espantada como está, poderia perguntar: o que leva um ser humano a cometer tal ato. A caminhar na direção do imponderável e do sem volta? O que estaria ele pensando , sentindo, desejando, questionando, naquele momento da tomada de uma decisão tão radical? Estaria mesmo em condições plenas para pensar e decidir? Que liberdade e autonomia são estas do sujeito contemporâneo que lhe dão o direito de saltar da ponte da vida na contramão do tempo, cortando o fluxo vital que, até há pouco o animava e o fazia sorrir e chorar? Qual o tempo certo par se morrer?Qual o modo mais confortável, menos doloroso.? Quem detém o poder destas escolhas?

Continuaremos, naturalmente, mudos. Poeticamente, a morte tem sido motivo de muitos poemas, ora líricos e reflexivos, ora realistas e contestatórios. Mas, no “pé do toco”, como costumava
dizer minha Avó materna, na veia, não há nenhuma poesia no ato de morrer. Ou será que existe uma estética da morte, como quiseram provar, com a própria morte, alguns artistas e filósofos. Mas também não há nenhuma estética em uma vida sem graça, sem sonhos, sem perspectivas. Diria alguém: quem vive como boi, merece morte bovina. Mas gente não é boi, disto ninguém duvida. Mas este não é o caso;

Socialmente, do pondo de vista da cidade, a casa comum, dos cidadãos – pelo menos é isto o que, em sua essência, deveria ser uma cidade , fica no ar questões igualmente complexas e profundas. Será que a cidade, o conjunto do seres que nela vive - não soube acolher com afetividade a pessoa que partiu? Será que, na maior parte do tempo, não lhe foi indiferente? Teria exigido muito e oferecido pouco? Que valores regem a vida cotidiana da cidade, ciosa por produzir, consumir e se reproduzir de maneira autoritária , acrítica? Será que a cidade se recusa a se transformar para se adequar e atender aos anseios de todos os seus filhos? Estará surda, a cidade ou barulhenta demais para ouvir os lamentos e pedidos de socorro de seus habitantes?

Sejam quais forem as perguntas formuladas, diante deste “gesto brutal” as respostas e ações serão sempre doloridas e pungentes. Quem já sofreu na carne semelhante dor, sabe o que isto significa. À cidade, aos seus cidadãos, habitantes do mundo em transe cabe mais que a lamentação e a perda de um filho. Cabe avaliar sua própria dinâmica, os fatores que operam suas atividades cotidianas – econômicas, políticas, culturais, espirituais, educacionais, esporte, lazer - as opções e oportunidades que ela oferece. Como são compartilhados os espaços públicos e o sonho coletivo da população?

A morte , por suicídio, de um cidadão, de um dos habitantes da cidade, não diz respeito apenas à uma decisão pessoal, súbita, lúcida ou não. Envolve questões éticas, socias e existenciais. Não diz respeito apenas a seus familiares. Como sujeito singular, particular e coletivo, isto é social, a morte, sempre diz respeito a todos nós. Não é um problema só para quem decidiu morrer, como pode sugerir o famigerado individualismo, a competição e o pragmatismo da globalização triunfante. Nem mesmo as cidades de pequeno porte, “interioranas” estão livres deste flagelo contemporâneo, chamado, por muitos, orgulhosamente, de neoliberalismo.

A cidade, que gerou seus filhos, deve dar conta dos motivos que os levam a morrer. Assim, desta forma, tão inesperadamente. Tão desesperadamente. A questão da morte, em certas condições, torna-se um problema social, interdisciplinar, devendo envolver, por exemplo, médicos, psicológicos, sociólogos, pedagogos, educadores, instituições de ensino, empresários, administradores, instituições públicas e privadas. Toda uma rede de configurações e conexões, as mais diversas, honestamente pervertidas. Rígidas, preocupadas apenas com a pulsação do bolso direito. Raramente divertidas. Raramente preocupadas com uma vida de qualidade, vivenciada e compartilhada comunitariamente. A felicidade já não faz parte da nossa geografia urbana. Melhor seria, fosse-nos dado aprender com o jogo da vida.
Cai chuva fina. Fria. Um céu cinzento desaba sobre a cidade. Anoitece.

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