quinta-feira, 11 de janeiro de 2007


A cidade que dorme

João Evangelista Rodrigues


“Despertados, eles dormem”. Este aforismo é de Heráclito, o filósofo grego que primeiro captou o fenômeno da mudança, do movimento e da permanência do Ser, das coisas. Dele é, também, a conhecida metáfora do rio ”ninguém se banha duas vezes no mesmo rio” marca o prelúdio da dialética de Sócrates. Muito mais tarde, o pensamento dialético, em suas vertentes idealista e materialista enriquecem as formas de se ver, interpretar e transformar o mundo. Ma a conversa aqui é outra.

“Despertados, eles dormem”. Esta afirmação permite-nos interrogar, como fizeram outros pensadores: estamos dormindo ou em vigília, diante da realidade que nos rodeia. Poderia ter escrito nos “cerca“. Achei melhor assim, pois, o ser humano deferência de todos os outros seres do planeta – pelo menos do planeta que conhecemos – por o único que pode pensar. Quer dizer que tem consciência do mundo onde habita. Pelo menos um fiozinho de percepção que lhe permite permanecer vivo. Sem grandes vôos, é verdade. Sendo morada da consciência tem condições e dever de agir com responsabilidade. De exercer sua liberdade individual, sem prejudicar outros indivíduos, a sociedade e a espécie da qual faz parte. Mas nem sempre isto acontece. Daí a necessidade de se criarem leis, sistemas de controle e repressão, diríamos, de reeducação daquelas pessoas que não souberam ou não quiseram compreender sua posição no mundo. Será que estamos todos adormecidos, afetados por uma cegueira genética, universal? O Nobel de literatura, José Saramago, escritor português que o diga. Ou será que estamos despertos. Impossibilitados de desfrutar de um sono tranqüilo devido às circunstâncias em que subvive o homem contemporâneo. Eis a questão.

“Despertados, eles dormem”. Empiricamente, agora, mais de meia noite, grande parte dos homens da terra está esticada em seus leitos nobre ou pobre, aquecidos ou congelados. Como pássaros e bichos, o homem tem necessidade de descansar. De adormecer. De ficar como se mortos, para revigorar suas energias e vencer o estresse a que todos estamos submetidos. Também, o senso comum nos fala do turbilhão de carros, buzinas, pernas e cabeças que invadem as avenidas todas as manhã. Cada um para um lado. Para direções diferentes. Indiferente ao destino de quem passa por ele ou nele esbarra involuntariamente. Mesmo nas cidades menores isto já acontece.

Até mesmo o meio rural já sofre com o sintoma da pressa e da pressão da luta pela sobrevivência. Eletrificada e com direito a televisão ele vive sem vier os dramas, as tensões e as grandes tragédias urbanas. Foi-se o tempo em que “ que se amarrava cachorro com lingüiça,”, “ que palavra possuía valor de documento” e que “ a roça dormia com as galinhas”. As preocupações e inseguranças diante de um futuro incerto, pesa sobre a cabeça de todos nós. Em todos as partes da terra. Sendo assim!

“Despertados, eles dormem”. De que sono estará Heráclito falando. Do sono biológico? Do sono da consciência? Do sono dos sentidos, entorpecidos em corpos “malhados” ou em corpos subnutridos. De que sonos dormem todos nós? De que cegueira? E se estamos despertos o que nos mantêm acordados? Ligados com ou sem apoio de ribites. Ilusão. Alienação. De que drogas todos dependemos?

Acordados, vemos o mundo a nossa volta? Compreendemos e compartilhamos, com paixão sincera, nossa compreensão sobre nós mesmos, sobre os outros indivíduos. Sobre a sociedade e nossa espécie? Estamos preocupados em transmitir os outros nosso conhecimento e nossa paixão pelo mundo e pela vida? Estaríamos realmente despertos? Ou somos apenas fantasmas entre fantasmas, como em um jogo de enganos comum coletivo?
Desculpe-me o leitor por tantas interrogações. Às vezes se fazem necessárias, mas prejudicam a elegância da escrita.

A escrita que, como a cidade brilha e confunde. Dorme e se desperta. Permanecem em vigília. Não pense, o leitor, que sou um dos que odeiam o turbilhão e a caótica sinfonia urbana. Sei que a civilização deve muito às cidades. Sei , também, que as megalópoles e metrópoles estão , atualmente, passando por um grave e caótico processo de saturação. De desmoronamento econômico, social, arquitetônico, cultural e moral. Com tudo isto, as cidades continuam cintilando como uma das mais importantes e criavas invenções dos homens.

Espaços de trocas materiais e simbólicas, as cidades podem ser comparadas a labirintos e constelações. Espaço público e lugar de percursos imprevisto e imprevisível. Penso e amo as cidades como galáxias perdidas no cosmos. Apesar dos mapas e sistemas de orientação e controle. Somos todos navegantes. Acordados ou vencidos pelo sono e o cansaço. Com previsões de naufrágios evidentes. Mesmo assim insistimos, resistimos. Buscamos por mares sempre navegados um só objeto de desejos: a felicidade.

Ao longo de sua história o homem sofre, não aprende com seu próprio sofrimento, nem com o sofrimento dos outros, um pequeno trecho que seja, das lições que diariamente o universo nos oferece. Por isso, permanece válido, e para muitos prevalece o aforismo do grego que afirma: “Despertados, eles dormem”. Cai sobre Minas chuvas torrenciais. Rios da lama cobrem campos, vilas e cidades. Chove prozac, coca, individualismo, grana, solidão e morfina. Em várias partes do mundo chovem mísseis. O pesadelo da guerra. A cidade planetária parece acordada.Veloz. Faminta de sonhos e de esperanças. Não para. Acelera. Treme.No entanto, dorme.

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