sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

Tristes desvarios, os de Minas.

Um rio de lama corre sobre o território Minas. Atinge cidades e vilas. Escorre pelos longes. O rio Muriaé alarga e aprofunda, liberta seu leito. O acidente que aconteceu na primeira quinzena de janeiro deste ano, foi provocado pelo rompimento da barragem da Mineração Rio Pomba Cataguases, instalada em Miraí, na Zona da Mata de Minas a 316 quilômetros de Belo Horizonte. O saldo é devastador dentro e fora de Minas: cerca de 2 milhões de metros cúbicos de rejeitos, que ocupavam uma área equivalentes a 30 campos de futebol, com 10 metros de profundidade cada um; afetou perto de 500 residências em Mirai, em Minas Gerais.. 100 mil pessoas das cidades Laje do Muriaé, São Sebastião do Ubá, Itaperuna, Cardoso Moreira e Italva, no estado do Rio de Janeiro, sem água potável; a empresa, reicedente pela terceira vez em crimes ecológicos com impactos ambientais de grandes proporções, foi interditada e multada em R$ 75 milhões pelo governo mineiro. Em Cataguases Bombeiros procuram um homem que foi levado pela enxurrada.


Ao mesmo tempo em que a população sofre com os danos físicos e morais, emocionais e econômicos, dançam as siglas e as cifras, movimentam-se as pedras do xadrez. O senso de dever, a solidariedade, atravessado por oportunidades e oportunismo faz da catástrofe um ambiente favorável às articulações e conexões as mais variadas. O governo, através de seus órgãos competentes – ou quase sempre incompetentes - , procura fazer o que deve. Faz o que pode. A população fragilizada mobiliza-se. Aprende com o susto que o conhecido aforismo “mineiro só é solidário no câncer”, pode não ser verdadeira, mas funciona sempre em horas de aflição. Os laudos deverão mostrar as causas do acidente e propor soluções geralmente morsas. A empresa criminosa promete “dar um auxílio” para amenizar os sofrimentos mais pungentes e tomar “as medidas cabíveis’ para que outros acidentes não ocorram no futuro”. O mundo, feito um grande rio de corpos sem almas, desumano e contraditório, segue seu caminho. Até quando não se sabe.

Vulcão de lamas

Muriaé transformou-se em um verdadeiro vulcão de lavas resfriadas. Enfezado, mostra seu poder e sua fragilidade. Como todos os rios, têm sede de extensões, porque com o inchaço de seu ventre, o rio já não suporta as afrontas nem a invasão de seus limites. O rio tem fome. Tem sede de homens. De ouro. Sede de ares e de outros rios.Quer vento e sal. Quer salvar-se a qualquer custo. Aliviar-se das dores, dobras e contorções provocadas pela poderosa “inteligência”, pela força brutal de homens ciosos por fatias cada vez maiores. Cansado, o rio, - todos os rios- sofre, luta contra os desmandos e desmazelos de indivíduos inescrupulosos. Quer ter direito a uma vida digna de sua natureza. De sua importância, por menor que ele seja, por mais distante que more.

Sofrimento e aprendizagem

A antiguidade de sua existência deu-lhe realeza de cidadão. Ensinou-lhe a compartilhar águas e vozes. Sons e cantigas conforme fosse seu caminho de pedras, de árvores secas ou de terra macia e argilosa. De nada entende o rio, apesar de sua mítica existência, dos ardis e armadilhas humanas. A natureza exige dele constante e transitória perenidade. Daí que só o vemos correndo, passeante. O mesmo diferente rio de sempre

O tempo ensinou-lhe a dar sua parcela de participação, por menor que seja, para vencer este urgente desafio cósmico: defender todas as formas de vida no Planeta. Devolver ao planeta a alegria, o direito à felicidade. Rio não é pré-moderno, moderno ou pós-moderno. Desliza, desenha seu curso, elabora seu discurso de liberdade e rebeldia por todos os quadrantes da terra. Da Bósnia a Bagdá. Da Irlanda ao Timor.Tanto em chão de Minas, minado e vasto, quanto no Agreste. Seja em Cuba, Venezuela, nos Estados Unidos da América ou no Iraque. Seja em Belo Vale, no Vale do Jequitinhonha ou em Belo Horizonte. Tudo de rio se fere. De febre líquida e incurável.Tudo de rio se faz e se mistura.

Suas fissuras, suas diferenças e indiferenças fluviais não mudam, em quase nada, seu tino de viajante sem pátria, sem bandeiras, sem deuses nem ideologias. Segue desinteressadamente. Aqui ou lá. Aonde quer que seja, quem conhece os mistérios do rio, com ele convive amorosamente.

Permanência necessária

Igual e diferente a todos os rios do mundo todo, bem que o Murié gostaria de descer de manso e cuidadoso, feito o caminhante anônimo que, de soslaio, observa os detalhes do percurso. Saboreia o curso das criaturas ribeirinhas tão singelas e sem recursos. Da saracura. Do socó. Do lambari. Do sapo-boi roncador de águas noturnas. Ou, por um momento, descrever com olhos merejantes, imaginárias figuras desenhadas pelas aves do céu.

Poderia insinuar-se silencioso no fundo dos quintais. Alimentar os pastos. Mover as máquinas Parar em poços de silêncio, quando isto fosse de seu desatino e desejo. Se e rio quisesse, poderia lavar nossas roupas sujas. Nossas insolências e omissões,. em sua casa, sem sacrifícios e mortes Lavaria piedoso nossa culpa diária. Livraria todos nós de nossos pecados públicos e oficias.

Seria melhor se pudesse o rio divertir-se no abismo fascinante das grotas e cachoeiras. Assim, de repente, poderia cirandear no vórtice de vorazes redemoinhos. Poderia compartilhar sua viagem, suas aventuras com os seres humanos que habitam, com sua permissão, o lugar que, há milênios, era só seu. Seu e de todos os outros seres que, sem estudar cálculos ou integrais, sem nem de longe desconfiar-se dos saberes e avanços da bioquímica, da. filosofia, da micro-física ou da bioética, sabem os mistérios do mundo. Todo rio também sabe, por origem e senso, respeitar o território das outras criaturas. Jamais invadiria a morada de outro rio. Desfruta, com naturalidade desinteressada, da pacífica convivência com todos os outros seres;

Paciência bovina

Não seria exagero, pode-se dizer, que todo o rio possui um pouco daquela paciência bovina em dia de missa. Sem cangas nem obrigações leiteiras, só lhe resta viver, pastar. Passar somente. Passar como passa o rio , de minha, de sua , da aldeia de Fernando Pessoa.

Mas em seus dias de ira e de busca de justiça, o rio lambe incestuosas as margens e vazantes. Alaga os baixios indefesos. Não mais afaga quem mergulha seu íntimo com intimidade. Com a consciência e a responsabilidade de quem sabe o que deve e o que pode fazer. Quando se enche de cismas e de iras, o rio avança contrario. Entre furioso e justiceiro, afoga o que encontra pelo frente. Mata animais e plantas. Entope córregos, nascentes e esgotos. Transborda de tristeza e desespero ante a impotência e o pânico das crianças, das mulheres e dos homens.

Em busca da felicidade

Rio Pomba. Mirai. Muriaé. Rio Fubá e Paraíba do Sul. O som das palavras, das letras e leis pode enganar, falsear a realidade. É que lá pelas bandas da Zona da Mata Mineira não mais se ri. Pouco se espera frente a tanta imprecisão. O rio chora as suas vítimas. As perdas de todos nós. O Rio Pomba, ao contrário do que sugere seu nome inscrito no dicionário, não voa. Arrasta-se feito serpente de lama devorando, arrastando tudo: árvores e aves. Bois, galinhas e cavalos. Porco e gente de todas as idades. Nada escapa. À população atingida pela tragédia só resta um consolo: segundo fontes técnicas e autoridades ambientais ‘a lama que o rio vomitou não é tóxica. Com a lama morreram bichos de todas as espécies. Também nós morremos um pouco com os bichos e os homens daquela parte do Estado. Para muitos lá se foram, rio a baixo, as promessas e esperanças de um 2 007 mais feliz. O signo Minas brilha no fundo das águas nervosas. Navega sem mares de cismas e tristes desvarios.

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