sábado, 28 de julho de 2007



Amizade: a palavra proibida

“Somos feitos de tal modo que os deveres comuns da amizade absorvem boa parte de nossa vida. Amar a virtude, estimar belas ações, ser gratos pelos benefícios recebidos, e, freqüentemente até, reduzir nosso próprio bem estar para aumentar a honra e a vantagem daqueles que amamos e que merecem ser amados — tudo isso é(deveria ser) muito natural.”
Etienne de la Boétie

No contexto neoliberal não seria exagero nem dogmatismo afirmar que a amizade é palavra proibida. Nem se trata de uma alusão

ou uma questão isolada e específica. É uma tendência, uma característica que, infelizmente, vem se cristalizando e tornando-se um modo social, ou melhor, anti-social, de viver, de se comportar. E proibido, aqui, não tem conotação repressora nem de censura política, cujos danos morais e culturais as gerações dos anos 70 conhecem bem o escuro sabor.

Aqui, palavra e gesto perdem contato com as realidades originais e raízes profundas do ser humano. Fundem-se sempre em suspeitos comportamentos. Tornam-se ambos impermeáveis. Impraticáveis em um ambiente no qual prevalece a lei do mais forte, do mais esperto, do mais cauteloso e submisso. Mascaram-se os discursos manifestos ou silenciosos sob a capa ambígua do selo das estratégias políticas, gerencias e ou profissional, em óbvias e conhecidas dissimulações. Facilmente perceptíveis. Detectáveis a olho nu.

Assim, se engana quem julga estar enganando a quem quer que seja. E o jogo de interesses, em curto prazo, prevalece sobre as heranças emocionais, construções e conquistas que só uma sólida amizade permite florescer. Perdem-se o solo, as árvores, as flores e os frutos. Presentes e futuros, enquanto giram as rodas da fortuna e do infortúnio. Na verdade, face da mesma moeda. Estações que se sucedem intermitentemente.

Em situações menos hostis os mais antigos já diziam, em tom popular, “amigos são aves de arribação.Se faz tempo bom , eles vêm.Se faz tempo ruim, eles vão.” Verdade cruel e injusta, mas que só se aprende na prática. No confronto diário. No desconforto da ausência e do silêncio de quem julgávamos amigos autênticos, prontos a nos abraçar e a se desdobrarem não só na glória ou na fartura, mas também nas horas de injúrias e de graves perdas e sofrimentos. Ao contrário do que canta, como só ele sabe, Milton Nascimento, hoje, amigo é coisa para se guardar no bolso esquerdo do palito de grife, no porta luvas do carro, junto com o talão de cheques, com o cartão de (des) crédito, com a chave do peito, preservativos e outras medalhas, e diplomas e bijuterias de somenos importância.
Essas reflexões me chegaram, quando no “dia do Amigo”, e há dia para toadas as coisas, recebi um sem número de mensagens por e-mail, pelo MSN, Orkut e até por telefone. Sem descartar a sinceridade e a boa intenção dos remetentes, pus-me a pensar sobre o declínio da autêntica amizade em nossos dias. Daí o texto que, para alívio do leitor apressado, já está quase no final. Espero que o tempo gasto em sua leitura seja compensado por alguma luz sobre os modos de ver e de viver do leitor com seus pares nos diversos ambientes em que transita e atua. Afinal, “Tudo se pode dizer ao amigo e ao sábio”. Ainda bem!
Em Mágoas de amizade: um ensaio em antropologia das emoções, Claudia Barcellos Rezende inicia o texto, explicando que a palavra "amizade" em português refere-se tanto a um sentimento quanto a uma relação específica. A autora cita o dicionário Aurélio, segundo o qual, esse sentimento engloba outros, como afeição, simpatia e ternura, e pode, assim, estar presente em relações que não são caracterizadas como de amizade. E compara o verbete do Aurélio com o seu equivalente em inglês, no dicionário Oxford, onde se encontra uma definição mais restrita da categoria (amizade), que se refere apenas à relação entre amigos ou ao sentimento associado a essa relação específica. Estas definições, de acordo com a ensaísta, apontam para elaborações culturais particulares, mostrando como o conceito de amizade pode diferir de sociedade para sociedade.
Já a filósofa Olgária Matos, talvez compreendendo a dificuldade da sociedade contemporânea em lidar abstrata e concretamente com este tema, foi buscar entre os pensadores clássicos e humanistas os fundamentos para compreensão e análise deste ao mesmo tempo comum e profundo. Dessa força mágica que alimenta a alma e o coração do homem desde os seus primórdios e que, agora, juntamente com outros valores essências da vida em sociedade, passa por uma vulgar banalização.
Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles, “refere-se à amizade, afirmando que o Homem, mesmo aquele que alcançou os mais altos níveis de intelectualidade, continua sendo o vivente sociável e nascido para a vida em comum. Seria, assim, estranho pretender que, mesmo aqueles que exercem a atividade mais elevada e agradável - a contemplação -, pudessem viver solitários e encerrados em si mesmos. Preciso que haja colaboração, homens entregues ao mesmo esforço intelectual, sustentando-se, mutuamente, em seu esforço”
Na visão de Matos, “A amizade é a dimensão da convivência humana onde há boa educação, leis justas e cidadãos virtuosos”. E com base em suas pesquisas de cunho clássico-humanista pondera: “Pela tolerância mágica da amizade, aceitamos de um amigo algo que não concederíamos a mais ninguém; também é ela que diminui os efeitos dramáticos do “mau encontro”, dos infortúnios, pois nela a dor é vivida em comum e compartilhada. Se a comunidade política se sujeita às contingências da fortuna, passa-se o inverso com a amizade, pois só ela tem a força para impedir que as diferenças de posses, fama e honras dividam os amigos, pois o que é de cada um é de todos e todos agem para que cada um seja o que é e tenha o que tem por uma reciprocidade entre iguais.
Como se vê, apesar de exigente e de difícil cultivo a amizade é fator de “excelência” ética. Pena que, de igual à felicidade seja, como afirma Adorno “uma ciência esquecida”. Mesmo e, sobretudo naqueles lugares/não lugares onde se dize cultivar as ciências e as técnicas mais avançadas do mundo contemporâneo. Talvez para que a amizade floresça com vigor e beleza esteja faltando uma adubação correta, em doses certas, de carinho, arte, cultura, respeito e solidariedade. Talvez deva sair do ambiente ascético que caracteriza os laboratórios científicos e o discurso estratégico do poder burocrático e inócuo e sujar-se de vida, de emoção, da mesma terra de que são feita todos os homens.
A amizade, portanto, não é doença contagiosa semelhante ao “mal-branco” de Saramago, é necessidade humana, “forma de excelência mor”. Deve, assim, compartilhar e se deixar compartilhar pelo carinho e pela cooperação e responsabilidade mútua. É arte de bem viver e de conviver. Manifesta-se muitas vezes discretamente. Mas se tiver de se valer da palavra, da linguagem codificada, que sejam códigos de valia real, dinheiro com lastro. Que seja senhora de palavras francas e não escrava dos simulacros e dissimulações, tendo em vista resultados líquidos e (in)certos.
Que seja forte o suficiente para superar as contradições e sintomas de uma sociedade doente, consumista, egoísta apressada e superficial, em acelerada transformação. E nessa pressa muitos se vão para as nuvens, levados pelo vórtice dos ventos “favoráveis”, pela urgência ou fantasia da migração, em busca do Éden prometido. Quiçá, um inferno tropical! E se migraram assim, em bandos, tão facilmente, traiçoeiros e noturnos, é por fazerem parte dos que não entendem, ou fingem não entender, por conveniência, os fundamentos da amizade: um sentimento que não se condiciona a conjunturas nem se curve às regras, justas ou nem tanto, do jogo político. E não se nega às críticas, quando necessárias. Que bons ou maus ventos os levem para o outro lado da terra. Para seus desertos abismos, pois, é para espaços, assim terríficos e inóspitos, que estes ventos costumam transportar, carregar à revelia, tudo o que vai encontrando pela frente.
Desculpe-me pela franqueza, mas amigos, nem sempre, é “pra essas coisas”! Aliás, Amigo, amigo não é coisa, objetos entre objetos, não e meio para nada, não é mesmo? É gente. Sujeito que se faz entre sujeitos. Pessoa de coração mais que o mundo vivo e vasto. Mais profundo. Amizade, palavra proibida aos seres desencantados. Obscuros e de falsa legenda. A palavra!