quarta-feira, 29 de agosto de 2007



definições


o que é a poesia
interroga o poeta
jovem sem sonho
sem teagonia
droga
não é
êxtase da alma
talvez
poderia ser só
o que seria
não coisa qualquer
motivo de fé
raiva
rebeldia
nasce na lama
sol
no rosto
clara liturgia
estranha mulher sem rosto
espelho e poço
estranha pergunta
se repete o jogo
ressuscita
grita o enigma
o mito a cada dia

responder não posso
sou de carne e osso
ouço a voz de tudo
de todos os sentidos
palavra e melodia
no início do sol posto

responder não ouso
ouço a voz concreta
de tudo em dobro
o que me cerca
o tempo sem solução
guardado no meu bolso

melhor seria ficar com sede
rasgar o esboço
beber a palavra escura
impura poesia
nostalgia sem dorso

respostas incompletas
a tal pergunta vã
não
de nada adiantariam

segunda-feira, 27 de agosto de 2007


lançe de redes transparentes
sobre o mar
me curvo no vazio

a intenção do peixe se insinua
nega a reta armadilha
a isca fixa no final da linha

em simultâneos movimentos
a pescaria se recolhe
o tempo dança e treme se prefigura

sábado, 25 de agosto de 2007



na estação da escrita
os palavras são mais tristes
coberto de flores negras
estranhas aranhas autofágicas e hirtas
inesgotáveis intangíveis combinações

tudo se perde
na poemação do tempo
a policromia das formas
a polifonia das cores
a sinfonia dos sentidos
tudo
de nada adiantaria acrescentar som na planície branca
tons de azul torquês
algum verde-escuro
nada mais se pode acrescentar a beleza mundo

nem mesmo o vermelho mais nobre ou o amarelo berrante
nada anima o coração das letras esmaecidas
enfileiradas
no campo geométrico
no pensamento minado e estático
há mais de meio século
vejo a primavera
a filha única de setembro
ir e vir
feito a esfera do sol
feito um relógio de pedra
se move
em torno de seu eixo
com sua estética surda e persistentre

o séqüito de formigas se sucede
em laboriosas
perversas
devotas procissões de falsas festas e desejos

se bem me lembro
mal finda o mês de agosto
e tudo recomeça

ai! que saudades não tenho de meus dezoito mil anos

nem pressa

sexta-feira, 24 de agosto de 2007


tinha ou não uma pedra
no meio do talvez caminho
mera transcendental hipótese
de Poeta Itabirano
meio homem
meio pássaro sem ninho

chutou por acaso
o vento em papel laminado
por engano
alguém diria
atraído pelo brilho
do mundo catatônico

torceu o nariz a matriz da língua
o olho da rua
fraturou o dedão do pé
perdeu o equilíbrio
de mais um verso quebrado
dançou um tango argentino
perdeu o rebolado
o sentido lírico da vida
da lua empedernida
mágoa embalsamada

perdeu mãe e ouro
namorada e razão
perdeu amigos
irmão
fazenda e gado

mas o poema de perdas
o Pico do Cauê
último legado
esse não
não se perdeu
anda comigo por todo o lado

quinta-feira, 16 de agosto de 2007


nada além da pedra
da pedra do túmulo à vista
na memória

a pedra mesma na origem
da história
da cidade sob vendas

nada além do pó da pedra
da plebe angular
obscura oferenda

nada além do oráculo da montanha
do santuário de pedra
do palavra branca lei esculpida no ar

nada além da pedra a moratória
do que sobre si e transitório
se dobra feito renda

terça-feira, 14 de agosto de 2007



o poeta desvenda o mundo





não há poesia na miséria


ma matéria bruta do universo


em seus perversos derivados





não é relativa a poesia


nem absolutaa


poesia é radioativa e inútil





viva fruta


vinha envenenada





onde não vai a nave louca


o navio o avião


o poema pousa na boca suave aterrissagem


sem motivo sem razão





vai mais que o pensamento


além do movimento lentode um trem de carga


esbaforido e barulhento
vai além do ar rarefeito


do artefardo de pedra


do que no ventre


no estômago
no peito se imagem lerda pesa


mergulha fundo a poesia no vazio das coisas


de tudo encharca os olhos
de sonhos
de objetos mortos


some no mais diverso do maior abismo


insinua de nudez amável por desvios proibidosr


evela a dor as dúvidas do homem





vai sempre por onde o ser humano for


zomba da água
do fogo
do vidro


do rigor da lógica


do fulgor da ótica
do vigor do orbe


do jogo da música
do visto em sombras


da hecatombe semiótica





não é animal de estimaçao
não é natural
feito a maçã sobre a mesa
não é neutra


transparente


doce ou azeda


obsessiva semente





não se observa no varal das nuvens


nem se experimenta se induz nem se deduz impune a poesia





não há ciência na poesia


mais que a bovina
impaciente siderurgia
pasta
come
rumina o verbo
recria
de nada sabe da permanência


de certo de nada adiantaria o finito ou eterno verso





não é clara nem vidente


não é mansa nem valente


nem artigo de luxo


nem conveniente
a poesia resiste simplesmente
entre o céu e a terra


entre o cérebro e o bruxo


entre o reto e o translúcido


simplesmente existe





o poema se rebela de poesia se tece


com o mundo não se confunde


quando ao poeta atentoà vida breve se entrega


e o mundo em transe assim consente


o poeta desvenda o mundo

segunda-feira, 13 de agosto de 2007


o cavalo vegetal

ver cavalos trepados em árvores
é função da poesia
magia de olhares em descanso
das mãos do vento
quando o animal nas grimpas
pasta as rédeas
e o sol no seu pelo se irradia

ver cavalos trepados em árvores
não é ilusão dos sentidos
é função para imagens desdomesticadas

o cavalo assume ares de céu
agarra-se aos galhos dos arbustos
escoiceia a monotonia da paisagem
como se ramos fosse
homens e astros
fossem vermelhos
fosse gêmeo das nuvens e das chuvas
de flores e folhas
dele mesmo
raiz
esbelto tronco azul fabuloso corcel

domingo, 5 de agosto de 2007

não

não o tudo que posso
não posso tudo
nem tudo que falo
é pássaro
paisagem
nem tudo de passagem
voa
não
não sou mera imagem

nem tudo hulha
nem tudo fogo
nem tudo foge
nem tudo molha
nem tudo brilha

nem tudo bolha
nem tudo milha

nem tudo falha
nem tudo urra
nem tudo mia
nem tudo terra
nem tudo ilha
nem tudo torre
nem tudo folha
nem tudo

basta

não falo pelos cotovelos
para os espantalhos
falo para os espelhos
pelos sem olhos
pelos que de joelhos
ferem de pedra
a pele da voz
falo pelo avesso da alma
pela voz dos que não

não
nem tudo se move
nem tudo é neve
nem tudo suave

não
não sou astro
sou ave

não calo sobre meu corpo
não consinto na minha morte
não
não calo por conveniência
de nenhuma ordem política
de nenhuma desordem pública
pelas contingências da língua
pela beleza das penas
pela imponência da túnica
pela impotência da fala
contra a palavra única
ouço
quando falar não ouso
quando o falar não posso
quanto no vento vou
meu pensamento ecoa

não
não posso falar tudo
nem tudo reaver da fala
a herança legendária
os contos de fada
a falácia da mata
a falência do outro
o som da floresta
o sumo da fruta
o sem razão do dito
o que me cala o sono
o interdito no
na ponta do bico
no labirinto do rio
o que em hábil álibi me ilude
o pouso
a gaiola de ouro
o ufanismo das letras
a profusão das mídias
a imprecisão dos livros
a profusão de eventos
os livros que nunca li

não
não falo
do que não seja pele nova
do que apelo não seja
dentro ou fora da mim
chuva branda
chumbo grosso
cova
casa
covil
minha fala
com a faca no pescoço
com a foice na janela do verso
não falo
não me sujeito
às penas dos homens
sou mesmo sem lado
sem trato
sem jeito
de coração enorme
inconforme e duro
pluriforme pássaro
bípede na vertigem
na voragem dos ares
com a velocidade
com a ferocidade
com a voracidade
da cidade e suas leis suspensas
da cidade e seus jardins suspeitos

se o fosso do bico
se a boca se abre
devolve em vômito
o ar
o murmúrio
a fala insossa
a sonoplastia
a polifonia
a microfonia do mundo
o poema sem carne
o alo do osso
o falso riso
quando falo
o verbo se lança em infinitos vôos
não passo em branco
pelo buraco das nuvens
passo como convém aos pássaros

falo com língua solta
com asas curtas
com os pés presos pelas as flores

falo
como durmo trepo
adoro vento

falo por mim
por mínimas palavras
por cima das sete cores
o mundo em sílabas se funde
só a linguagem me alimenta
debaixo do céu insólito

sábado, 28 de julho de 2007



Amizade: a palavra proibida

“Somos feitos de tal modo que os deveres comuns da amizade absorvem boa parte de nossa vida. Amar a virtude, estimar belas ações, ser gratos pelos benefícios recebidos, e, freqüentemente até, reduzir nosso próprio bem estar para aumentar a honra e a vantagem daqueles que amamos e que merecem ser amados — tudo isso é(deveria ser) muito natural.”
Etienne de la Boétie

No contexto neoliberal não seria exagero nem dogmatismo afirmar que a amizade é palavra proibida. Nem se trata de uma alusão

ou uma questão isolada e específica. É uma tendência, uma característica que, infelizmente, vem se cristalizando e tornando-se um modo social, ou melhor, anti-social, de viver, de se comportar. E proibido, aqui, não tem conotação repressora nem de censura política, cujos danos morais e culturais as gerações dos anos 70 conhecem bem o escuro sabor.

Aqui, palavra e gesto perdem contato com as realidades originais e raízes profundas do ser humano. Fundem-se sempre em suspeitos comportamentos. Tornam-se ambos impermeáveis. Impraticáveis em um ambiente no qual prevalece a lei do mais forte, do mais esperto, do mais cauteloso e submisso. Mascaram-se os discursos manifestos ou silenciosos sob a capa ambígua do selo das estratégias políticas, gerencias e ou profissional, em óbvias e conhecidas dissimulações. Facilmente perceptíveis. Detectáveis a olho nu.

Assim, se engana quem julga estar enganando a quem quer que seja. E o jogo de interesses, em curto prazo, prevalece sobre as heranças emocionais, construções e conquistas que só uma sólida amizade permite florescer. Perdem-se o solo, as árvores, as flores e os frutos. Presentes e futuros, enquanto giram as rodas da fortuna e do infortúnio. Na verdade, face da mesma moeda. Estações que se sucedem intermitentemente.

Em situações menos hostis os mais antigos já diziam, em tom popular, “amigos são aves de arribação.Se faz tempo bom , eles vêm.Se faz tempo ruim, eles vão.” Verdade cruel e injusta, mas que só se aprende na prática. No confronto diário. No desconforto da ausência e do silêncio de quem julgávamos amigos autênticos, prontos a nos abraçar e a se desdobrarem não só na glória ou na fartura, mas também nas horas de injúrias e de graves perdas e sofrimentos. Ao contrário do que canta, como só ele sabe, Milton Nascimento, hoje, amigo é coisa para se guardar no bolso esquerdo do palito de grife, no porta luvas do carro, junto com o talão de cheques, com o cartão de (des) crédito, com a chave do peito, preservativos e outras medalhas, e diplomas e bijuterias de somenos importância.
Essas reflexões me chegaram, quando no “dia do Amigo”, e há dia para toadas as coisas, recebi um sem número de mensagens por e-mail, pelo MSN, Orkut e até por telefone. Sem descartar a sinceridade e a boa intenção dos remetentes, pus-me a pensar sobre o declínio da autêntica amizade em nossos dias. Daí o texto que, para alívio do leitor apressado, já está quase no final. Espero que o tempo gasto em sua leitura seja compensado por alguma luz sobre os modos de ver e de viver do leitor com seus pares nos diversos ambientes em que transita e atua. Afinal, “Tudo se pode dizer ao amigo e ao sábio”. Ainda bem!
Em Mágoas de amizade: um ensaio em antropologia das emoções, Claudia Barcellos Rezende inicia o texto, explicando que a palavra "amizade" em português refere-se tanto a um sentimento quanto a uma relação específica. A autora cita o dicionário Aurélio, segundo o qual, esse sentimento engloba outros, como afeição, simpatia e ternura, e pode, assim, estar presente em relações que não são caracterizadas como de amizade. E compara o verbete do Aurélio com o seu equivalente em inglês, no dicionário Oxford, onde se encontra uma definição mais restrita da categoria (amizade), que se refere apenas à relação entre amigos ou ao sentimento associado a essa relação específica. Estas definições, de acordo com a ensaísta, apontam para elaborações culturais particulares, mostrando como o conceito de amizade pode diferir de sociedade para sociedade.
Já a filósofa Olgária Matos, talvez compreendendo a dificuldade da sociedade contemporânea em lidar abstrata e concretamente com este tema, foi buscar entre os pensadores clássicos e humanistas os fundamentos para compreensão e análise deste ao mesmo tempo comum e profundo. Dessa força mágica que alimenta a alma e o coração do homem desde os seus primórdios e que, agora, juntamente com outros valores essências da vida em sociedade, passa por uma vulgar banalização.
Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles, “refere-se à amizade, afirmando que o Homem, mesmo aquele que alcançou os mais altos níveis de intelectualidade, continua sendo o vivente sociável e nascido para a vida em comum. Seria, assim, estranho pretender que, mesmo aqueles que exercem a atividade mais elevada e agradável - a contemplação -, pudessem viver solitários e encerrados em si mesmos. Preciso que haja colaboração, homens entregues ao mesmo esforço intelectual, sustentando-se, mutuamente, em seu esforço”
Na visão de Matos, “A amizade é a dimensão da convivência humana onde há boa educação, leis justas e cidadãos virtuosos”. E com base em suas pesquisas de cunho clássico-humanista pondera: “Pela tolerância mágica da amizade, aceitamos de um amigo algo que não concederíamos a mais ninguém; também é ela que diminui os efeitos dramáticos do “mau encontro”, dos infortúnios, pois nela a dor é vivida em comum e compartilhada. Se a comunidade política se sujeita às contingências da fortuna, passa-se o inverso com a amizade, pois só ela tem a força para impedir que as diferenças de posses, fama e honras dividam os amigos, pois o que é de cada um é de todos e todos agem para que cada um seja o que é e tenha o que tem por uma reciprocidade entre iguais.
Como se vê, apesar de exigente e de difícil cultivo a amizade é fator de “excelência” ética. Pena que, de igual à felicidade seja, como afirma Adorno “uma ciência esquecida”. Mesmo e, sobretudo naqueles lugares/não lugares onde se dize cultivar as ciências e as técnicas mais avançadas do mundo contemporâneo. Talvez para que a amizade floresça com vigor e beleza esteja faltando uma adubação correta, em doses certas, de carinho, arte, cultura, respeito e solidariedade. Talvez deva sair do ambiente ascético que caracteriza os laboratórios científicos e o discurso estratégico do poder burocrático e inócuo e sujar-se de vida, de emoção, da mesma terra de que são feita todos os homens.
A amizade, portanto, não é doença contagiosa semelhante ao “mal-branco” de Saramago, é necessidade humana, “forma de excelência mor”. Deve, assim, compartilhar e se deixar compartilhar pelo carinho e pela cooperação e responsabilidade mútua. É arte de bem viver e de conviver. Manifesta-se muitas vezes discretamente. Mas se tiver de se valer da palavra, da linguagem codificada, que sejam códigos de valia real, dinheiro com lastro. Que seja senhora de palavras francas e não escrava dos simulacros e dissimulações, tendo em vista resultados líquidos e (in)certos.
Que seja forte o suficiente para superar as contradições e sintomas de uma sociedade doente, consumista, egoísta apressada e superficial, em acelerada transformação. E nessa pressa muitos se vão para as nuvens, levados pelo vórtice dos ventos “favoráveis”, pela urgência ou fantasia da migração, em busca do Éden prometido. Quiçá, um inferno tropical! E se migraram assim, em bandos, tão facilmente, traiçoeiros e noturnos, é por fazerem parte dos que não entendem, ou fingem não entender, por conveniência, os fundamentos da amizade: um sentimento que não se condiciona a conjunturas nem se curve às regras, justas ou nem tanto, do jogo político. E não se nega às críticas, quando necessárias. Que bons ou maus ventos os levem para o outro lado da terra. Para seus desertos abismos, pois, é para espaços, assim terríficos e inóspitos, que estes ventos costumam transportar, carregar à revelia, tudo o que vai encontrando pela frente.
Desculpe-me pela franqueza, mas amigos, nem sempre, é “pra essas coisas”! Aliás, Amigo, amigo não é coisa, objetos entre objetos, não e meio para nada, não é mesmo? É gente. Sujeito que se faz entre sujeitos. Pessoa de coração mais que o mundo vivo e vasto. Mais profundo. Amizade, palavra proibida aos seres desencantados. Obscuros e de falsa legenda. A palavra!
Além dos jardins da paixão



“Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.” Manoel de Barros

A maior parte dos romances entre empresas e profissionais, ao contrário do que espera o leitor mais conservador, quase sempre tem um final infeliz. É uma historia comum que nem os best-sellers de quinta categoria arriscariam a inventar desfechos mais ousados. Mesmo quando seus autores incluem ingredientes da moda - como a conquista da felicidade, receitas de auto-ajuda - em suas narrativas, para engabelarem seus leitores, o romance acaba em angu de caroço ou em pastelão gorduroso. Indigesto.

À medida que a ciência ou a arte da administração vai se transformando - não necessariamente se evoluindo ou se aprimorando – surgem novos modismo. Cada época com seus modelos de gestão. Com suas palavras de ordem, adotadas automaticamente, mecanicamente, sob o efeito da mídia e dos discursos bem elaborados e do álibi de consultores moderníssimos. Senhores e senhoras bem trajados, adornados com terno, gravata, “notebook” e outros atrativos tecnológicos; Adereços simbólicos de um mundo virtual e mágico que ajudam esses senhores a vender seu peixe. Passar gatos por lebre. Não que seus conhecimentos sejam de todo inválidos. Claro que não. Fosse assim não seria possível construir, em bases científicas e técnicas, os grandes complexos empresariais, organizacionais e coorporativos de grande complexidade.
O certo, é que existe um ponto cego neste relacionamento. Um espaço conflituoso que teima em resistir aos modismos, lançando um desafio permanente aos gestores e atores envolvidos na trama administrativa e produtivo. O romance não se desenvolve. O enredo trava com os personagens presos na angústia e de uma rotina estressante e sem motivação.

E porque o relacionamento não avança. Não se aprimoram os processos de maneira satisfatória para ambos os lados da parceria. Porque o namoro empresa e profissionais, de todos os setores e escalões, não se aprofundam em termos de respeito, fidelidade, compromisso mútuo e paixão?
E qual é a onda do momento? Qualidade de vida? Gestão participativa? Produtividade? Excelência? Informatização? Desenvolvimento sustentável? Cursos de especialização? Marketing? Responsabilidade Social? Propaganda? Comunicação? Upgrade pessoal e profissional? Ginástica Zen? Racionalização e flexibilização? E tantos outros expedientes periféricos que certamente desconheço e que não vêm ao caso neste momento. Nunca se pega na veia mesma do problema. No coração da empresa. No cérebro da organização. Nunca se enfrentam os verdadeiros dilemas vividos pela maioria das corporações. E o romance, pois é?

O romance fala de amor, mas lhe faltam “glamour” e paixão. Sua linguagem é balofa, retórica, desligada da cultura, dos sentimentos, valores e desejos de seus personagens. Não que seja de todo mentirosa, mas falseia a realidade concreta sobre a qual a organização está assentada. Gagueja sobre coisas da alma e da vida, criando um ambiente difuso, de difícil compreensão. Transfere a responsabilidade da empresa para dinâmica da sociedade, do mercado, isentando-se de qualquer culpa ou responsabilidade. Quer dizer, se o leitor se desinteressa pela história e abandona a leitura, a culpa é do leitor preguiçoso ou sem visão, nunca do romance mal escrito, mal editado. Afinal, e por isso mesmo, é um best-seller.

Já no romance escrito e mal vivido pelas organizações, em uma economia em crise, promete-se um final feliz, mas não cria uma história consistente, uma trama válida, nem se buscam, em alguns casos, as condições materiais, intelectuais e espirituais para se chegar a ele. No máximo, traçam-se estratégias de mando e de gestão à revelia da realidade e dos seus parceiros internos e externos, para atender a interesses próprios, nem sempre justos e democráticos. Traçam metas irrealistas, cujos princípios, meios e fins são ignorados pelos protagonistas, com exceção de alguns membros.Dos executivos que habitam o topo da pirâmide, ou , se o leitor preferir, o ponto mais alto da torre de marfim. Dai os conflitos entre interesses pessoais e corporativos. A rotina. A frustração. Daí as falências de toda a ordem no interior das empresas. Tudo isto pode acontecer quando não se leva em conta aquela força primordial que move os sentidos na tentativa de seduzir o objetivo de desejo, como acontece em todo inicio de namoro: a paixão.
De acordo com o escritor Tom Coelho, palestrante na área de qualidade de vida e marketing, que ministra palestras para discutir com profissionais e empresários os erros cometidos no processo que leva os dois lados a perderem a paixão inicial, ao contrário do que muitos pensam, a perda de interesse não decorre de questões salariais. “Os primeiros fatores, diz Coelho, são o orgulho de trabalhar na empresa e a sensação de fazer parte da organização”. Tratam-se, portanto, de fatores humanos, subjetivos, mais que recursos materiais, técnicos e financeiros. Um romance de roteiro previsível, com pequenas variações, desastres ocasionais e algumas aventuras de sucesso.

Sinto frustrar o leitor, mas nossa história não acaba aqui. Nosso romance continua de acordo com as contradições objetivas da realidade. Conforme cada um dos protagonistas, contribuímos para seu desfecho, a partir de onde vivemos e atuamos. O romance empresarial, por sua vez, vinculado por natureza ao modo de produção vigente, não escapa a estas contradições. Prefiro deixar os personagens agirem com liberdade e destreza o bastante para escreverem, eles mesmos, um livro mais interessante do que os best-sellers que abarrotam as prateleiras das livrarias, o coração e a inteligência dos leitores menos atentos e exigentes. Poderia ser um romance policial, de aventura, ficção cientifica, futurologia, ou, ate mesmo, de terror tipo, “Doctor” Frankstain. Vampiros? Existem, embora pareçam “fingir de mortos para viverem felizes”. Podem estar dormindo no umbral da organização sobre seus próprios pesadelos nos porões da consciência ou se passem por invisíveis nos horários convencionais dos expedientes e de trabalho. Talvez esses romances não conquistem certos tipos de leitores. Aqueles movidos pela paixão que ilumina e não cegados pela competitividade, pela ganância, pelo egoísmo individual, de grupos ou de classe, bem ao estilo neoliberal, Acrítico e sem limites. Tal como você, já vi este filme, antes.
Plim- Plim. ”The End”.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

O lugar da Cultura
Mal termino a leitura do editorial “A Cultura sem casa” da edição nº139, Ano IV de 6 a 13 de julho de 2007, do Jornal Portal de Minas, e um triste pensamento vem-me à cabeça: pobre país, o Brasil. Sem memória. Sem esperança.
Diz a matéria, “Assim acontece em Piumhi, que tem seu maior acervo cultural sem um lugar específico para visitação e estudos. O material que conta um pouco da história dos piumhienses está dividido, desagrupado, longe dos seus objetivos que seria unir as pessoas através da história”
Pobre país, o Brasil, mais de 50 milhões de analfabetos. Crise econômica, política, educacional e ética. Até aérea. Os céus brasileiros estão de luto. E tem mais. Com um déficit habitacional de mais de sete milhões de moradias, não seria de se estranhar o fato de a cultura também não ter um casa decente para se abrigar contra as traças do tempo, os ventos da ignorância, da insensibilidade, das lutas de poder e da omissão. Não seria, se de fato isto não ocorresse bem debaixo de nossos narizes em nível nacional, estadual e municipal. Infelizmente. Isto mostra, em parte, porque a cultura nunca recebe o tratamento devido, como realidade essencial da vida humana e fator estratégico para o desenvolvimento sócio-educacional e político dos municípios brasileiros. Não por acaso, rege-se a cultura, hoje em dia, pelas regras do marketing e da propaganda e das leis de incentivo, que abrem brechas para diversas formas de corrupção, favoritismo, dirigismo e manipulação, de verbas e pensamentos. Em muitos casos, a gestão cultural não passa de um apêndice da área educacional e até mesmo esportiva. Faltam formação, informação, critérios e projetos próprios de gestão da cultura. Resguardados a liberdade de escolha individual e os princípios da pluralidade e da diversidade, é lamentável ver a cultura se transformar, nas mãos da mídia, dos empresários inescrupulosos e dos “podres poderes” públicos, em mero divertimento com a promoção de megaeventos de custo milionário e de gosto artístico duvidoso. Quem ganha com isto? Aqui, nem vale a pena especular! Quem sai perdendo? Não êxito em afirmar: a comunidade. E sempre com alegação cínica e elitista de que é disto que o povo gosta. Será mesmo? Será que o povo gosta mesmo é de carne de terceira e de vinho de ruim qualidade? Tenho minhas dúvidas! E você, o que acha?
O leitor há de concordar comigo pelo menos neste ponto: cultura não é luxo, nem lixo. Sendo assim, merece respeito. Como tal, deve ser tratada com profissionalismo, numa perspectiva contemporânea, dinâmica e integrada à educação, a economia e ao turismo. A qualidade de vida e o desenvolvimento sustentável passam, necessariamente, por uma ação cultural autêntica e emancipadora.
Por suas dimensões materiais, espirituais, artísticas, simbólicas e comunicacionais, certamente o processo cultural ultrapassa os limites de uma Casa de Cultura, sobretudo nas de modelos centralizadores, elitistas, preocupadas em preencher a agenda com eventos e cursos à revelia do gosto e do interesse da população. Neste sentido é melhor mesmo que a cultura continue sem casa própria, e viva e se manifeste livremente sob o céu aberto, nas periferias urbanas, nas comunidades rurais, nas praças públicas sob as mais diversas formas de expressão. Da capoeira ao Rap. Do congado à moda de viola, a legítima. Folias de Reis e festas religiosas, passando pelo artesanato e pelas rezas, chás, costumes e crenças populares e pelo sabor sofisticado e simples das comidas e doces caseiros. Pior que cultura sem casa é uma casa – seja mansão ou choupana- sem cultura, não é mesmo? E isto não falta por este Brasil a fora, onde o que mais vale são os carros de luxos, as grandes camionetes incrementadas com sons estridentes e música “breganeja”, tipo “cowboy” americano, via Barretos, as marcas da moda, a ostentação, o desinteresse pelas autênticas causas sócio-culturias, a desinformação e a violência de toda a ordem. A alienação diante da realidade brasileira e a balofa algazarra dos sem causas. Sem identidade.
No mais, é como escreve Neusa Maria Mendes de Gusmão, em seu artigo, Noção de Cultura e seus desafios, mais que fruto do contato entre coisas, as culturas resultam do diálogo do homem consigo mesmo e com o outro diferente de si, parte de uma mesma humanidade, nem sempre vista como tal, posto que são todas, a um só tempo una e diversa, universal e singular. O lugar da cultura é, principalmente, a inteligência, o coração e a sensibilidade do ser humano. Do indivíduo e cidadão do mundo. Agora, pesquisar, guardar, registrar, preservar, expor, comercializar objetos e produtos culturais criados por uma comunidade é direito e dever da própria comunidade, diretamente ou através de seus representantes legais, eleitos democraticamente. A uma Casa de Cultura, portanto, cabe, entre outras coisas, identificar talentos, mobilizar a comunidade, discutir, democraticamente, projetos, sensibilizar o meio empresarial e educacional, criar, planejar e irradiar novos conceitos e formas de fazer cultural. São também lugares privilegiados da cultura, a liberdade, a alegria e a esperança de um mundo mais belo e mais justo. Pois, a Cultura é o Etos, a morada do Homem. Infinitas protas para a imaginaçao.


o rio de minha aldeia
não é o Tejo
não tem a alegria de Lisboa
é um riozinho à toa
triste e sertanejo

passa pela periferia
sem peixes
entre seixos
fezes calcárias
aros e cacos de telha

o rio de minha aldeia
não passeia
quando passa ressoa de memória seca
em linha reta
colonizado e fraco
lateja
ferve na veia de Fernando Pessoa
fere
estanca o pensamento
voa

o poema sangra

joão evangelista rodrigues


terça-feira, 10 de julho de 2007


os derivados do poema
seus derivados de pedra


Bueno de Rivera
derivou do leite
o sossego burguês
de cá do rio do Santana
de quase seco o signo fluvial
derivo de pedra
da pedra de cal
o poema
verbo em comum
indiviso
a mesma branca rês
o ermo emblema
escrevo
de areia branca
à margem

a perversa indústria
a fúria branca do forno
contra a paisagem escura
derivo da pedra
do leite do poema de Rivera
tudo o que da pedra se subrai
sob o olhar bovino
da urbe semovente
na irônica oficina
os derivados da pedra
infinitamente se multiplicam

na indústria da pedra
à deriva
nada se cria
todos se perdem
pelas regras do jogo
tudo se transforma
ao calor da forja
na alquimia do fogo
a favor
na orgia da corja
tudo o que da pedra se deriva

dos derivados do poema
seus derivados de pedra - lV

deriva da pedra
de seu fragmento
na vertente
do que resta de pedra
por dentro
no ventre da montanha
mais o que do leite deriva
o deleite efêmero
mais o que do leite a vida
o delito
o acidente
mais o que do leite
o delírio ardente
da renda
do enfeite sobre o pano
da emenda
a orquídea no jardim
a divisa da fazenda
a cicatriz no capim
a pedra na varanda
no piso do alpendre
a pedra travestida
em altar sem oferenda
o dente branco de leite
de derivação tangível
sob o dormente
sobre a estrada de ferro
por onde o trem evade
previsível e veloz
ferozmente




dos derivados do poema
seus derivados de pedra - lll



deriva da pedra
o sono da plebe
da sombra deriva o que se segue
o que ao cego se permite ver
de visão mais funda
o que mais de morte se adensa
se oferece à vista
mais que a dança da cuja
na fonte
na fronte
quando se lê de pé
de pedra em pedra
derivada
grita interminável lista

a obesidade burguesa
deriva da pedra
a delicadeza da dama
deriva da pedra
a iguaria na mesa
deriva da pedra
a nobreza de falsa estampa
deriva da pedra
o pão que o diabo amassa
sob encomenda
deriva da pedra
a pele da tigreza
deriva da pedra
a fé da realeza
deriva da pedra
da pedra à deriva
a clareza da manhã
palavra acesa

deriva da pedra
a insensatez da cidade
deriva da pedra
a polidez do vigário
deriva da pedra
a mesquinhez do salário
deriva da pedra
o cargo, o erário público
deriva da pedra
o crime impune
deriva da pedra
o carro ,o velório de luxo
deriva da pedra
a ojeriza oculta
deriva da pedra
o ócio, o negócio obtuso
deriva da pedra
o relógio ilógico do luto

dos derivados do poema

seus derivados de pedra - ll



deriva da pedra
a ilusão de ótica
deriva da pedra
a ladainha do mote
deriva da pedra
a base da casa
deriva da pedra
o muro do lote
o rumor da rima semiótica
deriva da pedra
a água do pote
deriva da pedra
o bote da cobra
deriva da pedra
o relatório do consórcio
do impacto ambiental
deriva da pedra
o mandato do edil
deriva da pedra
o crime impune
deriva da pedra
o murmúrio do rio
a água do cantil
deriva da pedra
a explosão de ordens
a desordem do túmulo
deriva da pedra
o apito da locomotiva
o apogeu da urbe
o que na cidadela não se mostra
à mineira se move
de maneira furtiva e mórbida

deriva da pedra à vista
a vida
seus derivados bovinos
boiada noturna sobre paisagem branca
tudo o que resta ou sobra
no abismo da ravina
de sono secreto
do semi-acordado cinismo
de pedra em pedra a rapina segue
à deriva se vinga
dos derivados do poema
seus derivados de pedra - l



Rivera ri
se faz de réu
de rei
de rês
revira no túmulo
de pedra de cal
prediz

de cá do rio Santana
o rebanho pasta e sonha um sonho
luzidio e plácido

de lá do sem futuro
os derivados da pedra berram urram ares de triunfo





Uma adorável cidade



“Se amamos uma cidade, devemos admiti-lo.” Se a não amamos, também devemos admiti-lo. A primeira afirmação é do coronel americano Cantwell, mais um sólido personagem criado por Ernest Hemingway, escritor incisivo, maravilhoso e exato. A sua obra obtém a mais larga audiência em todo o mundo e constitui-se num depoimento de imensa valia sobre os mais agudos problemas do homem de hoje. E o que há de pensar o leitor do grande livro e ainda desta singela crônica a partir desta constatação feita por um militar ansioso por abandonar a vida da caserna e se entregar ao sabor do tempo de vida que lhe resta e aos prazeres de uma vida marcada pelo amor e pela beleza.
Em “Na outra margem entre as árvores”, Hemingway apresenta o relato contundente e sincero do coronel Cantwell, um velho combatente que passa as últimas vinte e quatro horas da vida na estranha e bela cidade de Veneza. Trata-se da narrativa de um mundo violento e conturbado, obtida através da imagem de um homem bem ao gosto da literatura, do jornalismo e do cinema contemporâneos. Veneza, a mais bela cidade do mundo, como Paris ou outra qualquer, escapa aos sentidos, logra a percepção mais refinada e arguta. Pois, uma cidade, por menor e anônima que seja, é sempre um lugar ( um des-lugar) indescritível em sua essência e totalidade.
Nem mesmo o gênio de Hemingway, nem Ítalo Calvino com suas Cidades Invisíveis, conseguiram esgotar tal realidade complexa, povoada de tantos mistérios e possibilidades. E é sobre isso que pretendo escrever, igualmente de maneira direta e objetiva. Sem nem de longe querer imitar o estilo curto e pensamentos claros do jornalista e escritor atento e exigente, que em Hemingway se complementam e se realizaram ao longo de uma vida agitada e de final deliberadamente escolhido. Gesto próprio de quem sabe a hora de entrar e de sair de cena, sem juízos morais nem avaliações psicológicas. Só o sujeito diante de seu destino; frente a um mundo quebrado e à deriva. Perdido no seu motivo, tentando sobreviver e lidar com a trágica morte da razão no pós-guerra. Uma razão cada vez mais enfraquecida e questionada num período convencional e imprecisamente denominado de pós-modernidade: tempo sem futuro, sem esperança, sem critério e nem discernimento de princípios e valores, cuja mórbida realidade todos vivemos.
E é justamente neste ambiente que o coronel de 51 anos de idade, de modos rudes, mas sempre desejoso de demonstrar amabilidade, sem nunca o conseguir por mais de dois minutos, obriga-nos a pensar as relações que estabelecemos com a cidade. O objetivo é colocar o leitor em uma encruzilhada, na qual não há espaço para hipocrisias, jogos de poder, sortilégios nem mascaramentos de qualquer natureza. A afirmação direta e clara do coronel poderia se transformar, sem esforço, em uma interrogação igualmente direta e clara: Por que as pessoas conseguem nutrir sentimentos antagônicos, como o amor e o ódio, em relação a uma mesma cidade?
Quando o personagem de Ernest Hemingway se refere à cidade de Veneza, provavelmente não está a pensar apenas nos seus aspectos físico-geográficos. Ou apenas em suas riquezas naturais, como jazidas, nascentes d’água potável, terras agricultáveis, pastagens e retalhos de florestas que, por ventura, ainda resistem à fúria predatória do “homo-economicus”. Semelhante a Calvino, estaria a pensar, sobretudo, na riqueza de sua arquitetura urbana e humana. Não apenas em seus traçados arquitetônicos, mas também neles, com suas ruas, avenidas e ruelas. Suas pontes, viadutos e canais, bem ou mal iluminados. Enfim, em seus edifícios religiosos, esportivos, suas catedrais comerciais e financeiras. A tal olhar afiado e justo não faltarão, sem dúvida, as favelas, os bairros clandestinos, os hospitais, creches e lojas de quinquilharias chinesas, hotéis de terceira categoria, casas de prostituição, restaurantes e motéis de luxo, hospícios e presídios de segurança máxima. Isso sem falar dos imensos depósitos de ferro-velho, do cemitério público e do asilo. Uma cidade, para agradar ao sofisticado gosto de um coronel com mais de meio século de vida, teria que ter museus, galerias de arte e muitos bosques com árvores frondosas. Não faltariam escolas e universidades, dignas deste nome, nem monumentos. A cidade mesma seria uma ampla e rica biblioteca, uma obra de arte de inestimável valor. Deveria ser um lugar aprazível, desses em que todos temos vontade de morar e desfrutar cada fatia, até o incerto dia da morte, dama de golpe exato e justo. Um lugar onde os loucos, os ignorantes, os poetas, os doentes, os mendigos e andarilhos, os portadores de deficiência, os viciados, os mortos e os diferentes não seriam discriminados nem confinados em espaços especiais. Uma cidade só, para todos! Seria uma cidade onde todos pudessem passear despreocupadamente, sem o temor de ser olhado com desprezo ou ironia, fosse o que fosse. Estivesse como e com quem estivesse. Uma cidade livre e justa, lírica e feliz. Uma cidade adorável, como um livro aberto, ilustrado pelos grandes pintores da humanidade, aos olhos de todos os seus habitantes e visitantes. A cidade toda, toda vista e revisitada a partir de todos os ângulos e pontos de vista.
Estaria o coronel Cantwell apaixonado como estava pela condessa Renata, leve em sua beleza e frescor, a pensar, principalmente, na maneira como as pessoas se comportam, vestem e falam. Sobre o tipo de amizade e de solidariedade que se pratica. Sobre que tipo de cultura seus habitantes produzem e desfrutam. Sobre o que bebem e comem. Sobre os que não comem. Sobre os que estão fora do mapa da cidade. Sobre a colorida e agradável bagunça dos mercados e mercearias. Estaria refletindo, nos valores espirituais e estéticos que constituem e animam o cotidiano da urbe e permeiem projetar um futuro inteligente e luminoso.
Veneza, uma adorável cidade! Mas, a cidade imaginada e desejada pelo personagem de Hemingway talvez seja, em parte, a mesma cidade em que vivemos e nunca observamos atentamente. Talvez seja a cidade com que sonhamos pra viver o resto de nossas vidas. Justa, sincera e sem traições. Pode ser, talvez, a cidade que todos devemos ajudar a construir compartilhadamente. E não sermos dela apenas herdeiros, aventureiros, beneficiários e predadores.
Imaginária ou real, é nesse lugar indescritível que desejo viver e morrer. Mais que a Veneza do coronel Cantwell, uma cidade adorável.


Embaçamentos Urbanos ou Embaraçamentos Humanos

Não raro, ouve-se a moçada dizer, em tom de ironia: tá tudo embaçado, “brother”! A expressão, contaminada em várias direções semântica, cultural e sociolingüística, expressa bem a situação do mundo contemporâneo. Uma aldeia em chamas. Aos olhos vermelhos de fumaça ou de chorar o leite derramado, ou por amores perdidos, o céu não é mais de brigadeiro. Está embaçado de lato a baixo. A Leste, a Oeste, de Norte a Sul. São embaçamentos. De toda ordem. Formam-se ao longo do tempo, como parasitas em árvores frondosas, pela tradição dos nomes, pela omissão das leis, pelos interesses econômicos e vícios político-administrativos.
De repente, dá-se conta de que tudo está embaçado: o corpo, a alma, a inteligência, a responsabilidade social, a sensibilidade, a consciência política e, sobretudo, a ética. Praticamente ninguém escapa à onda de embaçamentos que invade a sociedade contemporânea. Longe de nós e, não raro, muito próximo.Nas nossas barbas. Debaixo de nossos olhos. Embaçamento dos grandes, que só não vê quem não quer ou quem, de tão embaçado, já não distingue o que é um céu de brigadeiro de um céu invadido pelo vendaval de pó, poeira e fumaça.
Os embaçamentos urbanos, então, estes são praticamente invisíveis. Seguem o ritual do mando e são provocados em horas mortas, no sigilo dos escritórios e no confortável segredo tradicional da família mineira, por exemplo.E nem adianta o alerta dos cientistas e autoridades internacionais sobre a trágica e preocupante realidade ambiental do planeta. Tudo vai se tornando cada vez mais embaçado. Do espelho do banheiro à alma humana, do meio rural ao meio urbano. Nem os céus de Brasília escapam à fúria de tal inescrupulosa fumaça. Se tudo continuar assim não será mais possível respirar, praticar esportes ao ar livre ou mesmo observar as garças que ousarem sobrevoar pela manhã e à tarde as casas tranqüilas e submissas da cidade enfumaçada.
Tal embaçamento vem tomando corpo entre nós, arcos de fumo e mau cheiro. Se você ainda não percebeu , pare e observe.
Toda a região está infestada por esses incríveis processos de embaçamento, geralmente subsidiados por “justificativas e licenças oficiais plausíveis”. Tudo em nome do progresso inadequado, do lucro injusto e da abusiva utilização da natureza, da qual somos parte integrante. Ou ainda há quem pense ser o homem o rei da criação, com direitos arbitrários sobre os bens da terra?
Que o ser humano não seja um animal natural, apesar de toda sua capacidade intelectual, prepotência e ânsia de poder absoluto.Daí, que muito pouco é feito ou quase ninguém se lixa com questões ambientais sérias como a camada de ozônio, efeito estufa, o esgotamento da água potável no Planeta, com a morte dos rios e das florestas, da extinção da fauna e da flora. E claro, do próprio ser humano, artífice e ator, beneficiário e vítima da estranha tragédia em escala mundial que hoje se alardeia.
Ou há quem ainda pense que Arcos, com suas queimas de pedra e pneus, lotes vagos, lixo espalhado na periferia e na zona rural consiga escapar ilesa? E os municípios vizinhos de Pains, Formiga e Córrego Fundo, abarrotados de calcinações, com a mesma vocação econômica predatória, não fazem parte do Planeta Terra? Não é por acaso que se multiplicam, entre os habitantes da região, casos de gripe, câncer, alergia, irritação da pele e dos olhos, asma e insuficiência respiratória.
Triste embaçamento do céu, da terra, do mar e do espírito humano.Torpes embaçamentos urbanos que infetam o ambiente e envenenam os sentimentos e corações.
Desculpe-me o leitor, pois, no lugar destas palavras embaçadas de indignação, gostaria de escrever algo mais leve, inspirado, quem sabe, nas garças que ainda sobrevoam a cidade branca, sob a luz quente do entardecer. A realidade, entretanto, impõe palavras mais dolorosas e contundentes. Enfim, uma Ética do Cuidado, como propõe Leonardo Boff, implica também a denúncia e a contestação. Implica, ainda, a exigência de medidas urgentes por parte das autoridades, dos órgãos públicos, das empresas de grande, médio e pequeno portes e de uma atitude pró-ativa de todos os cidadãos para eliminar o abuso contra a natureza e o desrespeito ao ser humano, ao cidadão comum que somos todos, em todos os quadrantes da Terra.
Que Arcos possa comemorar seus 69 anos de emancipação política-administrativa com o firme propósito de seguir o exemplo de tantas cidades brasileiras, onde se investem recursos humanos e econômicos significativos em benefício de uma política ambiental séria, tendo em vista a educação cidadã, o respeito e o cuidado com a natureza. Só assim, será de fato uma cidade amável e agradável para se viver, com qualidade de vida, esperança e acima de tudo, respeito mútuo.