sábado, 17 de fevereiro de 2007

Tiáogo III

Ler e amar exige paixão

João Evangelista Rodrigues

A leitura e o amor exigem posições sempre novas e confortáveis. Exige paixão. Não se lê e não se ama como se estivesse comendo um “cachorro quente” em um fim de rua de subúrbio. Pensando melhor, confortável é pouco. As posições devem ser agradáveis. Sugestivas e prazerosas. É isto mesmo que estou querendo dizer. Você, leitor experiente e sensível, acertou em cheio! O ato de ler e o de amar têm em comum a paixão e o deleite. Ler sem paixão seria assim como fazer amor sem prazer. Sem desejo. Compulsoriamente.

Dois motivos levaram-me a escrever as linhas acima. O primeiro deles foi a modo que vi um adolescente lendo uma revista de variedades, que ficava entre xérox de livros didáticos. Textos extraídos da Internet e um monte de apostilas rabiscadas. O segundo motivo e, este me veio à tona, ao lembrar-me de como Ítalo Calvino age, ao transformar em sua narrativa, estilística e estrategicamente, o leitor concreto em um personagem ficcional, imaginário. Portanto, no romance pós-moderno, de raízes borgianas, os dois leitores são, ao mesmo tempo, um e outro. Assim, para o leitor que lê o livro, para o leitor que está lendo este pequeno ensaio sobre o ato de ler, não será fácil distinguir , com nitidez, o lugar onde ele realmente vive e se move: na vida real, com seus condicionamentos e aborrecimentos concretos, ou em um mundo virtual, ficcional. Em caso de dúvida, o leitor terá que resolver sozinho, esta “parada”. A bem da verdade, sozinho, de todo, não. Ele e o texto que leva nas mãos. Seja o livro de Calvino – se você ainda não leu, vale a pena ir ao encontro dele – ou em companhia deste rápido caso de amor com as palavras derramadas aqui, carinhosamente.

Ah, o adolescente, você ainda se lembra dele? Claro, ele estava lendo uma revista de variedades, de tal modo extravagante, que acabou por me chamar a atenção. Não que quisesse intrometer-me nos hábitos do moço, que mal conhecia. A revista estava longe dos olhos, no chão, entre as pernas, em meio a uma bagunça visual e sonora formada por CDs, DVDs, celular, garfo, prato com resto de macarrão, xícaras e copos de plásticos sujos de refrigerantes. O caos era maior porque o som e televisão do quarto estavam ligados ao mesmo tempo. No primeiro, tocava, a todo volume, uma destas despretensiosas “baladinhas” americanas, sem estilo nem personalidade. Na TV, o noticiário do trágico desabamento que abalou a cidade de São Paulo e sensibilizou todo o país. Para completar, a garota que morava no apartamento da frente esganiçava, frenética, o nome de nosso protagonista. Pela insistência e altura dos gritos, ela precisava falar com ele qualquer forma. Nosso leitor, por sua vez, não estava nem aí, para nenhuma destas coisas.

Explicados os motivos conscientes, que me levaram a este texto, deixo o leitor em paz para que ele desfrute o pouco que falta destas páginas.

Assim inicia o romance do italiano, nascido em Cuba: “ Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: "Não, não quero ver televisão!". Se não ouvirem, levante a voz: "Estou lendo! Não quero ser perturbado!".
O adolescente, sob luz fraca e nebulosa, olhava desinteressadamente, para a revista. A mocinha quase se rasgava de tanta gritaria. Nunca se viu coisa igual. Queria mostrar o novo modelo de seu celular seu colega de faculdade. Nosso jovem leitor, por seu turno, seria incapaz de relatar, de repetir ao menos, uma só passagem da leitura. Mal decorou a cor, o nome da figura principal e a marca da grife que, orgulhosamente, exibia na parte traseira das calças.

Escolher a posição correta par ler exige espontaneidade e criatividade. Em pouco tempo, o corpo se cansa. Acomoda-se. A leitura, por mais interessante ou necessária, em alguns casos, torna-se pesada, chata, cansativa. O leitor acaba se dispersando e lá se foi o essencial do que lera.
Para seu leitor/protagonista, para o leitor concreto, já com o livro dele entre as mãos, Calvino sugere: “Escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido, encolhido, deitado”. Deitado de costas, de lado, de bruços. Numa poltrona, num sofá, numa cadeira de balanço, numa espreguiçadeira, num pufe. Numa rede, se tiver uma. Na cama, naturalmente, ou até debaixo das cobertas. Pode também ficar de cabeça para baixo, em posição de ioga. Com o livro virado, é claro.
A esta altura dos acontecimentos, a revista ficou jogada entre os variados objetos. Desprezada. Entretanto, o autor de “Se o viajante...” não perde a esperança em seu leitor, no caso , o nosso, e oferece-lhe mais uma sugestiva opção, em tom de lúdica ironia: “manter os pés levantados é condição fundamental para desfrutar a leitura”.E completa, “regule a luz para que ela não lhe canse a vista. Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá meio de mover-se.
O ato de ler mereceu a atenção de muitos outros escritores/leitores, antigos e contemporâneos. Machado de Assis era mestre na arte de envolver o leitor de seus romances, contos e poemas.
Outro, foi Rilke, o autor de “Carta a um jovem poeta”. Profundo e sensível, como era, escreveu: “Quero viver como se o meu tempo fosse ilimitado”. Quero me
recolher, me retirar das ocupações efêmeras. “Mas ouço vozes, vozes benevolentes, passos que se aproximam e minhas portas se abrem”.

O amor e a leitura se confundem no prazer das posições que o leitor/amante escolhe para ler e para amar. Na forma como a paixão se expressa e alarga o universo do leitor, real ou ficcional, no movimento íntimo e infinito das letras corporificadas e eternizadas pelo corpo e pelo espírito do homem. Gestos de leitura do amor. Ato amoroso de ler. Em todos os casos, a melhor escolha será sempre a do leitor.

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