domingo, 23 de setembro de 2007








a arquitetura do fogo


a morte exibe sua musculatura de ira
sobre os “Tristes Horizontes”

setenta línguas de fogo
setecentas mãos ociosas
sete mil cabeças de medo
seu intestino sem fundo
sua fome de tudo
seu coração em pânico
seu insidioso ofício
sua boca sem futuro
sua ironia
seus infinitos pés sem rumo
suas geografias de susto
seus vaticínios e sortilégios


a morte dança
ri e bamboleia
estala estica e se insinua
ao ritmo do vento estéril
estaca
de repente surge cega
sobe silva suga e saboreia
lambe a lua de memória
a ramagem seca
lima a limalha de sangue
avança
nua e crua
se eleva acima da cabeça da urbe
da montanha de ferro
mais que a turba rude
gargalha range e ruge
reina absoluta em luz
arranca da ferrugem a fuligem
a fogueira do abutre
o que resta do inferno
da oficina do lucro
entra de súbito
assalta a janela dos escritórios
as casas
os bares
os bancos
os edifícios públicos
as ruas
os oratórios
nos ônibus
os carros
os sanatórios
parques e viadutos
na fera engrenagem do mundo
a morte triste e bela
mira fere de fogo
a paisagem dos olhos

o mirante se humilha
em delirante ladainha
ante a beleza do fogo
a Igreja São José
treme
da cabeça aos pés
sob a ruína do Fogo
a Praça da Liberdade
chora
sob o rumor do fogo
a Savassi linda e sedutora
geme
sob o rubor do fogo
a Avenida Afonso Pena
pára
sob o aviso do fogo

o Parque das Mangabeiras
se dobra
sob o malabarismo do fogo
a estátua de Tiradentes
cambaleia
sob a covardia do fogo
a Assembléia Legislativa
fica surda ao discurso do fogo
a Avenida Nossa Senhora do Carmo
se exorciza
contra o escárnio do fogo
o BH Shopping se incendeia
com o marketing do fogo
o Palácio das Artes
se evapora no branco
sob a música do fogo
o Parque Municipal
põe as barbas de molho
ante a traição do fogo
a Praça do Papa
se ajoelha
sob o poder do fogo
a Avenida do Contorno
se contorce
aperta o cerco
sob o vórtice do fogo

todos os semáforos se apagam
Nossa Senhora de Lurdes
não se curva
à prece do fogo
à fantasmagoria das chamas

a Rodoviária foge
sob as nuvens de cinza
sob a fumaça de abusos
o febre do fogo
tudo devora e contamina
a rotina dos dias
a ogiva das almas
o coração do vento
o ventre das aves
a vazante das águas
a veia dos bichos
as plantas mais altas
o Belo Horizonte aberto

no vazio da ravina
a morte cega
avança dança devaneia
desafia
desatina
não se troca
não se vende
não se entrega
de mãos beijadas
ao delírio da renda
não se morre nunca a morte
sobre o todo predomina
ao ritmo do vento
ao inchaço do ventre
ao riso do povo
por fora por dentro
do invólucro da fala
da casca do novo
no campo na cama
no sossego do jazigo
mais que vulcão andante
mais que perigo e gozo
a morte reina
definitiva amante
só não se ri
de si
acima da cabeça da cidade
efervescente e triste
proclama
interroga
a impune
misteriosa assassina

e agora Drummond
e agora Carlos
e agora José
e agora amor
e agora todos
todos os rostos e nomes
de ruas e praças
de santos anônimos
de falsários e heróis
de manicômios e presídios
de palácios
museus e monumentos


e agora Joaquim
e agora Silvérios
e todos os mitos
e todos os pretéritos
e todos os gritos
e todos os minérios
e todos os oráculos
e monastérios
todos os livros
bordados com ouro e ferro
todos os homens sem orelhas
todos os anjos sem cérebro
todos os pássaros sem sexo
sem voz
para ouvir
sem asas
para ungir
sem sonhos
para voar
pra recriar e mugir
para gritar e fugir
pra vomitar e latir
pra decorar e sentir
praguejar e repetir
para recitar por mais mil anos
o som da palavra Serra
a insônia do Curral del Rey
a ironia da morte
a afasia da terra
o sono de todas as coisas
o prefácio da vida subalterna
o poema sacro
o evangelho profano
a profecia
a solidão do Poeta Itabirano

São Sete Quedas de agonia
São sete anos de Peste
São sete séculos de luto

a morte exibe sua arquitetura de fogo
o poema em chamas no vazio das formas

a vida passa

quinta-feira, 20 de setembro de 2007


não apresses tua primavera
o setembro ensolarado
no calendário virtual
espera cada flor se abrir
no tempo exato
como o corpo desabrocha
em tímidos avisos
em noites e manhas desinteressadas
não apresses teus passos
para o amor
para o jardim que te espera

a primavera é paisagem

necessariamente secreta

segunda-feira, 10 de setembro de 2007


os homens estão dormindo
de um sono confortável e triste
mesmo depois do sol desperto
queimar de fulgor a cortina do quarto
suas fatigadas retinas

mesmo quando dirigem
seus automóveis velozes
e automaticamente buzinam
estão dormindo

um cão sem dono
permanece esticado no asfalto
um mendigo vasculha ao lata de lixo
a caixa vazia de sonhos
um leiteiro anacrônico
anuncia o branco da manhã

a oficina enfurecida
se agita
grita
se irrita
a cidade acorda
sem dúvida dividida

sob o invisível signo de som
da anti-sinfonia eletrônica


à vida à venda a preço de banana
a morte em suaves prestações

meninas feito bonecas
se oferecem na vitrine das esquinas

o supremo enigma continua vivo
ninguém decifra

os homens estão dormindo

domingo, 9 de setembro de 2007


a língua é nó e nódoa
nem soda tira
moda
signo
simulacro
não é nobre nem mendiga
nem verdade
nem mentira
a língua é móvel
livre experiência antiga
não é obvia
nem objetiva
a língua luta
contra a morte esgrima
bicho estranho
amarra a vida nova
ao nó da narrativa

terça-feira, 4 de setembro de 2007


a contrapelo da pedra
de seu código de cal
leio a feito de lesma
a pedra mesma ilesa
lisa caligrafia mineral

leio de Cabral a Drummond
a lírica impura poesia
ancestral

o poema solto no campo
desliza de rio submerso
como se veia fosse
de sangue inodoro
a palavra bruta
de boa em boca
no socavão da gruta

a contrapelo do texto rola
voa
a pretexto da pedra imóvel
"Nel mezzo del camin
de nostra vita".
a vida mesma desmedido
verso
a contrapelo da pedra no caminho
ecoa

quarta-feira, 29 de agosto de 2007



definições


o que é a poesia
interroga o poeta
jovem sem sonho
sem teagonia
droga
não é
êxtase da alma
talvez
poderia ser só
o que seria
não coisa qualquer
motivo de fé
raiva
rebeldia
nasce na lama
sol
no rosto
clara liturgia
estranha mulher sem rosto
espelho e poço
estranha pergunta
se repete o jogo
ressuscita
grita o enigma
o mito a cada dia

responder não posso
sou de carne e osso
ouço a voz de tudo
de todos os sentidos
palavra e melodia
no início do sol posto

responder não ouso
ouço a voz concreta
de tudo em dobro
o que me cerca
o tempo sem solução
guardado no meu bolso

melhor seria ficar com sede
rasgar o esboço
beber a palavra escura
impura poesia
nostalgia sem dorso

respostas incompletas
a tal pergunta vã
não
de nada adiantariam

segunda-feira, 27 de agosto de 2007


lançe de redes transparentes
sobre o mar
me curvo no vazio

a intenção do peixe se insinua
nega a reta armadilha
a isca fixa no final da linha

em simultâneos movimentos
a pescaria se recolhe
o tempo dança e treme se prefigura

sábado, 25 de agosto de 2007



na estação da escrita
os palavras são mais tristes
coberto de flores negras
estranhas aranhas autofágicas e hirtas
inesgotáveis intangíveis combinações

tudo se perde
na poemação do tempo
a policromia das formas
a polifonia das cores
a sinfonia dos sentidos
tudo
de nada adiantaria acrescentar som na planície branca
tons de azul torquês
algum verde-escuro
nada mais se pode acrescentar a beleza mundo

nem mesmo o vermelho mais nobre ou o amarelo berrante
nada anima o coração das letras esmaecidas
enfileiradas
no campo geométrico
no pensamento minado e estático
há mais de meio século
vejo a primavera
a filha única de setembro
ir e vir
feito a esfera do sol
feito um relógio de pedra
se move
em torno de seu eixo
com sua estética surda e persistentre

o séqüito de formigas se sucede
em laboriosas
perversas
devotas procissões de falsas festas e desejos

se bem me lembro
mal finda o mês de agosto
e tudo recomeça

ai! que saudades não tenho de meus dezoito mil anos

nem pressa

sexta-feira, 24 de agosto de 2007


tinha ou não uma pedra
no meio do talvez caminho
mera transcendental hipótese
de Poeta Itabirano
meio homem
meio pássaro sem ninho

chutou por acaso
o vento em papel laminado
por engano
alguém diria
atraído pelo brilho
do mundo catatônico

torceu o nariz a matriz da língua
o olho da rua
fraturou o dedão do pé
perdeu o equilíbrio
de mais um verso quebrado
dançou um tango argentino
perdeu o rebolado
o sentido lírico da vida
da lua empedernida
mágoa embalsamada

perdeu mãe e ouro
namorada e razão
perdeu amigos
irmão
fazenda e gado

mas o poema de perdas
o Pico do Cauê
último legado
esse não
não se perdeu
anda comigo por todo o lado

quinta-feira, 16 de agosto de 2007


nada além da pedra
da pedra do túmulo à vista
na memória

a pedra mesma na origem
da história
da cidade sob vendas

nada além do pó da pedra
da plebe angular
obscura oferenda

nada além do oráculo da montanha
do santuário de pedra
do palavra branca lei esculpida no ar

nada além da pedra a moratória
do que sobre si e transitório
se dobra feito renda

terça-feira, 14 de agosto de 2007



o poeta desvenda o mundo





não há poesia na miséria


ma matéria bruta do universo


em seus perversos derivados





não é relativa a poesia


nem absolutaa


poesia é radioativa e inútil





viva fruta


vinha envenenada





onde não vai a nave louca


o navio o avião


o poema pousa na boca suave aterrissagem


sem motivo sem razão





vai mais que o pensamento


além do movimento lentode um trem de carga


esbaforido e barulhento
vai além do ar rarefeito


do artefardo de pedra


do que no ventre


no estômago
no peito se imagem lerda pesa


mergulha fundo a poesia no vazio das coisas


de tudo encharca os olhos
de sonhos
de objetos mortos


some no mais diverso do maior abismo


insinua de nudez amável por desvios proibidosr


evela a dor as dúvidas do homem





vai sempre por onde o ser humano for


zomba da água
do fogo
do vidro


do rigor da lógica


do fulgor da ótica
do vigor do orbe


do jogo da música
do visto em sombras


da hecatombe semiótica





não é animal de estimaçao
não é natural
feito a maçã sobre a mesa
não é neutra


transparente


doce ou azeda


obsessiva semente





não se observa no varal das nuvens


nem se experimenta se induz nem se deduz impune a poesia





não há ciência na poesia


mais que a bovina
impaciente siderurgia
pasta
come
rumina o verbo
recria
de nada sabe da permanência


de certo de nada adiantaria o finito ou eterno verso





não é clara nem vidente


não é mansa nem valente


nem artigo de luxo


nem conveniente
a poesia resiste simplesmente
entre o céu e a terra


entre o cérebro e o bruxo


entre o reto e o translúcido


simplesmente existe





o poema se rebela de poesia se tece


com o mundo não se confunde


quando ao poeta atentoà vida breve se entrega


e o mundo em transe assim consente


o poeta desvenda o mundo

segunda-feira, 13 de agosto de 2007


o cavalo vegetal

ver cavalos trepados em árvores
é função da poesia
magia de olhares em descanso
das mãos do vento
quando o animal nas grimpas
pasta as rédeas
e o sol no seu pelo se irradia

ver cavalos trepados em árvores
não é ilusão dos sentidos
é função para imagens desdomesticadas

o cavalo assume ares de céu
agarra-se aos galhos dos arbustos
escoiceia a monotonia da paisagem
como se ramos fosse
homens e astros
fossem vermelhos
fosse gêmeo das nuvens e das chuvas
de flores e folhas
dele mesmo
raiz
esbelto tronco azul fabuloso corcel

domingo, 5 de agosto de 2007

não

não o tudo que posso
não posso tudo
nem tudo que falo
é pássaro
paisagem
nem tudo de passagem
voa
não
não sou mera imagem

nem tudo hulha
nem tudo fogo
nem tudo foge
nem tudo molha
nem tudo brilha

nem tudo bolha
nem tudo milha

nem tudo falha
nem tudo urra
nem tudo mia
nem tudo terra
nem tudo ilha
nem tudo torre
nem tudo folha
nem tudo

basta

não falo pelos cotovelos
para os espantalhos
falo para os espelhos
pelos sem olhos
pelos que de joelhos
ferem de pedra
a pele da voz
falo pelo avesso da alma
pela voz dos que não

não
nem tudo se move
nem tudo é neve
nem tudo suave

não
não sou astro
sou ave

não calo sobre meu corpo
não consinto na minha morte
não
não calo por conveniência
de nenhuma ordem política
de nenhuma desordem pública
pelas contingências da língua
pela beleza das penas
pela imponência da túnica
pela impotência da fala
contra a palavra única
ouço
quando falar não ouso
quando o falar não posso
quanto no vento vou
meu pensamento ecoa

não
não posso falar tudo
nem tudo reaver da fala
a herança legendária
os contos de fada
a falácia da mata
a falência do outro
o som da floresta
o sumo da fruta
o sem razão do dito
o que me cala o sono
o interdito no
na ponta do bico
no labirinto do rio
o que em hábil álibi me ilude
o pouso
a gaiola de ouro
o ufanismo das letras
a profusão das mídias
a imprecisão dos livros
a profusão de eventos
os livros que nunca li

não
não falo
do que não seja pele nova
do que apelo não seja
dentro ou fora da mim
chuva branda
chumbo grosso
cova
casa
covil
minha fala
com a faca no pescoço
com a foice na janela do verso
não falo
não me sujeito
às penas dos homens
sou mesmo sem lado
sem trato
sem jeito
de coração enorme
inconforme e duro
pluriforme pássaro
bípede na vertigem
na voragem dos ares
com a velocidade
com a ferocidade
com a voracidade
da cidade e suas leis suspensas
da cidade e seus jardins suspeitos

se o fosso do bico
se a boca se abre
devolve em vômito
o ar
o murmúrio
a fala insossa
a sonoplastia
a polifonia
a microfonia do mundo
o poema sem carne
o alo do osso
o falso riso
quando falo
o verbo se lança em infinitos vôos
não passo em branco
pelo buraco das nuvens
passo como convém aos pássaros

falo com língua solta
com asas curtas
com os pés presos pelas as flores

falo
como durmo trepo
adoro vento

falo por mim
por mínimas palavras
por cima das sete cores
o mundo em sílabas se funde
só a linguagem me alimenta
debaixo do céu insólito

sábado, 28 de julho de 2007



Amizade: a palavra proibida

“Somos feitos de tal modo que os deveres comuns da amizade absorvem boa parte de nossa vida. Amar a virtude, estimar belas ações, ser gratos pelos benefícios recebidos, e, freqüentemente até, reduzir nosso próprio bem estar para aumentar a honra e a vantagem daqueles que amamos e que merecem ser amados — tudo isso é(deveria ser) muito natural.”
Etienne de la Boétie

No contexto neoliberal não seria exagero nem dogmatismo afirmar que a amizade é palavra proibida. Nem se trata de uma alusão

ou uma questão isolada e específica. É uma tendência, uma característica que, infelizmente, vem se cristalizando e tornando-se um modo social, ou melhor, anti-social, de viver, de se comportar. E proibido, aqui, não tem conotação repressora nem de censura política, cujos danos morais e culturais as gerações dos anos 70 conhecem bem o escuro sabor.

Aqui, palavra e gesto perdem contato com as realidades originais e raízes profundas do ser humano. Fundem-se sempre em suspeitos comportamentos. Tornam-se ambos impermeáveis. Impraticáveis em um ambiente no qual prevalece a lei do mais forte, do mais esperto, do mais cauteloso e submisso. Mascaram-se os discursos manifestos ou silenciosos sob a capa ambígua do selo das estratégias políticas, gerencias e ou profissional, em óbvias e conhecidas dissimulações. Facilmente perceptíveis. Detectáveis a olho nu.

Assim, se engana quem julga estar enganando a quem quer que seja. E o jogo de interesses, em curto prazo, prevalece sobre as heranças emocionais, construções e conquistas que só uma sólida amizade permite florescer. Perdem-se o solo, as árvores, as flores e os frutos. Presentes e futuros, enquanto giram as rodas da fortuna e do infortúnio. Na verdade, face da mesma moeda. Estações que se sucedem intermitentemente.

Em situações menos hostis os mais antigos já diziam, em tom popular, “amigos são aves de arribação.Se faz tempo bom , eles vêm.Se faz tempo ruim, eles vão.” Verdade cruel e injusta, mas que só se aprende na prática. No confronto diário. No desconforto da ausência e do silêncio de quem julgávamos amigos autênticos, prontos a nos abraçar e a se desdobrarem não só na glória ou na fartura, mas também nas horas de injúrias e de graves perdas e sofrimentos. Ao contrário do que canta, como só ele sabe, Milton Nascimento, hoje, amigo é coisa para se guardar no bolso esquerdo do palito de grife, no porta luvas do carro, junto com o talão de cheques, com o cartão de (des) crédito, com a chave do peito, preservativos e outras medalhas, e diplomas e bijuterias de somenos importância.
Essas reflexões me chegaram, quando no “dia do Amigo”, e há dia para toadas as coisas, recebi um sem número de mensagens por e-mail, pelo MSN, Orkut e até por telefone. Sem descartar a sinceridade e a boa intenção dos remetentes, pus-me a pensar sobre o declínio da autêntica amizade em nossos dias. Daí o texto que, para alívio do leitor apressado, já está quase no final. Espero que o tempo gasto em sua leitura seja compensado por alguma luz sobre os modos de ver e de viver do leitor com seus pares nos diversos ambientes em que transita e atua. Afinal, “Tudo se pode dizer ao amigo e ao sábio”. Ainda bem!
Em Mágoas de amizade: um ensaio em antropologia das emoções, Claudia Barcellos Rezende inicia o texto, explicando que a palavra "amizade" em português refere-se tanto a um sentimento quanto a uma relação específica. A autora cita o dicionário Aurélio, segundo o qual, esse sentimento engloba outros, como afeição, simpatia e ternura, e pode, assim, estar presente em relações que não são caracterizadas como de amizade. E compara o verbete do Aurélio com o seu equivalente em inglês, no dicionário Oxford, onde se encontra uma definição mais restrita da categoria (amizade), que se refere apenas à relação entre amigos ou ao sentimento associado a essa relação específica. Estas definições, de acordo com a ensaísta, apontam para elaborações culturais particulares, mostrando como o conceito de amizade pode diferir de sociedade para sociedade.
Já a filósofa Olgária Matos, talvez compreendendo a dificuldade da sociedade contemporânea em lidar abstrata e concretamente com este tema, foi buscar entre os pensadores clássicos e humanistas os fundamentos para compreensão e análise deste ao mesmo tempo comum e profundo. Dessa força mágica que alimenta a alma e o coração do homem desde os seus primórdios e que, agora, juntamente com outros valores essências da vida em sociedade, passa por uma vulgar banalização.
Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles, “refere-se à amizade, afirmando que o Homem, mesmo aquele que alcançou os mais altos níveis de intelectualidade, continua sendo o vivente sociável e nascido para a vida em comum. Seria, assim, estranho pretender que, mesmo aqueles que exercem a atividade mais elevada e agradável - a contemplação -, pudessem viver solitários e encerrados em si mesmos. Preciso que haja colaboração, homens entregues ao mesmo esforço intelectual, sustentando-se, mutuamente, em seu esforço”
Na visão de Matos, “A amizade é a dimensão da convivência humana onde há boa educação, leis justas e cidadãos virtuosos”. E com base em suas pesquisas de cunho clássico-humanista pondera: “Pela tolerância mágica da amizade, aceitamos de um amigo algo que não concederíamos a mais ninguém; também é ela que diminui os efeitos dramáticos do “mau encontro”, dos infortúnios, pois nela a dor é vivida em comum e compartilhada. Se a comunidade política se sujeita às contingências da fortuna, passa-se o inverso com a amizade, pois só ela tem a força para impedir que as diferenças de posses, fama e honras dividam os amigos, pois o que é de cada um é de todos e todos agem para que cada um seja o que é e tenha o que tem por uma reciprocidade entre iguais.
Como se vê, apesar de exigente e de difícil cultivo a amizade é fator de “excelência” ética. Pena que, de igual à felicidade seja, como afirma Adorno “uma ciência esquecida”. Mesmo e, sobretudo naqueles lugares/não lugares onde se dize cultivar as ciências e as técnicas mais avançadas do mundo contemporâneo. Talvez para que a amizade floresça com vigor e beleza esteja faltando uma adubação correta, em doses certas, de carinho, arte, cultura, respeito e solidariedade. Talvez deva sair do ambiente ascético que caracteriza os laboratórios científicos e o discurso estratégico do poder burocrático e inócuo e sujar-se de vida, de emoção, da mesma terra de que são feita todos os homens.
A amizade, portanto, não é doença contagiosa semelhante ao “mal-branco” de Saramago, é necessidade humana, “forma de excelência mor”. Deve, assim, compartilhar e se deixar compartilhar pelo carinho e pela cooperação e responsabilidade mútua. É arte de bem viver e de conviver. Manifesta-se muitas vezes discretamente. Mas se tiver de se valer da palavra, da linguagem codificada, que sejam códigos de valia real, dinheiro com lastro. Que seja senhora de palavras francas e não escrava dos simulacros e dissimulações, tendo em vista resultados líquidos e (in)certos.
Que seja forte o suficiente para superar as contradições e sintomas de uma sociedade doente, consumista, egoísta apressada e superficial, em acelerada transformação. E nessa pressa muitos se vão para as nuvens, levados pelo vórtice dos ventos “favoráveis”, pela urgência ou fantasia da migração, em busca do Éden prometido. Quiçá, um inferno tropical! E se migraram assim, em bandos, tão facilmente, traiçoeiros e noturnos, é por fazerem parte dos que não entendem, ou fingem não entender, por conveniência, os fundamentos da amizade: um sentimento que não se condiciona a conjunturas nem se curve às regras, justas ou nem tanto, do jogo político. E não se nega às críticas, quando necessárias. Que bons ou maus ventos os levem para o outro lado da terra. Para seus desertos abismos, pois, é para espaços, assim terríficos e inóspitos, que estes ventos costumam transportar, carregar à revelia, tudo o que vai encontrando pela frente.
Desculpe-me pela franqueza, mas amigos, nem sempre, é “pra essas coisas”! Aliás, Amigo, amigo não é coisa, objetos entre objetos, não e meio para nada, não é mesmo? É gente. Sujeito que se faz entre sujeitos. Pessoa de coração mais que o mundo vivo e vasto. Mais profundo. Amizade, palavra proibida aos seres desencantados. Obscuros e de falsa legenda. A palavra!
Além dos jardins da paixão



“Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.” Manoel de Barros

A maior parte dos romances entre empresas e profissionais, ao contrário do que espera o leitor mais conservador, quase sempre tem um final infeliz. É uma historia comum que nem os best-sellers de quinta categoria arriscariam a inventar desfechos mais ousados. Mesmo quando seus autores incluem ingredientes da moda - como a conquista da felicidade, receitas de auto-ajuda - em suas narrativas, para engabelarem seus leitores, o romance acaba em angu de caroço ou em pastelão gorduroso. Indigesto.

À medida que a ciência ou a arte da administração vai se transformando - não necessariamente se evoluindo ou se aprimorando – surgem novos modismo. Cada época com seus modelos de gestão. Com suas palavras de ordem, adotadas automaticamente, mecanicamente, sob o efeito da mídia e dos discursos bem elaborados e do álibi de consultores moderníssimos. Senhores e senhoras bem trajados, adornados com terno, gravata, “notebook” e outros atrativos tecnológicos; Adereços simbólicos de um mundo virtual e mágico que ajudam esses senhores a vender seu peixe. Passar gatos por lebre. Não que seus conhecimentos sejam de todo inválidos. Claro que não. Fosse assim não seria possível construir, em bases científicas e técnicas, os grandes complexos empresariais, organizacionais e coorporativos de grande complexidade.
O certo, é que existe um ponto cego neste relacionamento. Um espaço conflituoso que teima em resistir aos modismos, lançando um desafio permanente aos gestores e atores envolvidos na trama administrativa e produtivo. O romance não se desenvolve. O enredo trava com os personagens presos na angústia e de uma rotina estressante e sem motivação.

E porque o relacionamento não avança. Não se aprimoram os processos de maneira satisfatória para ambos os lados da parceria. Porque o namoro empresa e profissionais, de todos os setores e escalões, não se aprofundam em termos de respeito, fidelidade, compromisso mútuo e paixão?
E qual é a onda do momento? Qualidade de vida? Gestão participativa? Produtividade? Excelência? Informatização? Desenvolvimento sustentável? Cursos de especialização? Marketing? Responsabilidade Social? Propaganda? Comunicação? Upgrade pessoal e profissional? Ginástica Zen? Racionalização e flexibilização? E tantos outros expedientes periféricos que certamente desconheço e que não vêm ao caso neste momento. Nunca se pega na veia mesma do problema. No coração da empresa. No cérebro da organização. Nunca se enfrentam os verdadeiros dilemas vividos pela maioria das corporações. E o romance, pois é?

O romance fala de amor, mas lhe faltam “glamour” e paixão. Sua linguagem é balofa, retórica, desligada da cultura, dos sentimentos, valores e desejos de seus personagens. Não que seja de todo mentirosa, mas falseia a realidade concreta sobre a qual a organização está assentada. Gagueja sobre coisas da alma e da vida, criando um ambiente difuso, de difícil compreensão. Transfere a responsabilidade da empresa para dinâmica da sociedade, do mercado, isentando-se de qualquer culpa ou responsabilidade. Quer dizer, se o leitor se desinteressa pela história e abandona a leitura, a culpa é do leitor preguiçoso ou sem visão, nunca do romance mal escrito, mal editado. Afinal, e por isso mesmo, é um best-seller.

Já no romance escrito e mal vivido pelas organizações, em uma economia em crise, promete-se um final feliz, mas não cria uma história consistente, uma trama válida, nem se buscam, em alguns casos, as condições materiais, intelectuais e espirituais para se chegar a ele. No máximo, traçam-se estratégias de mando e de gestão à revelia da realidade e dos seus parceiros internos e externos, para atender a interesses próprios, nem sempre justos e democráticos. Traçam metas irrealistas, cujos princípios, meios e fins são ignorados pelos protagonistas, com exceção de alguns membros.Dos executivos que habitam o topo da pirâmide, ou , se o leitor preferir, o ponto mais alto da torre de marfim. Dai os conflitos entre interesses pessoais e corporativos. A rotina. A frustração. Daí as falências de toda a ordem no interior das empresas. Tudo isto pode acontecer quando não se leva em conta aquela força primordial que move os sentidos na tentativa de seduzir o objetivo de desejo, como acontece em todo inicio de namoro: a paixão.
De acordo com o escritor Tom Coelho, palestrante na área de qualidade de vida e marketing, que ministra palestras para discutir com profissionais e empresários os erros cometidos no processo que leva os dois lados a perderem a paixão inicial, ao contrário do que muitos pensam, a perda de interesse não decorre de questões salariais. “Os primeiros fatores, diz Coelho, são o orgulho de trabalhar na empresa e a sensação de fazer parte da organização”. Tratam-se, portanto, de fatores humanos, subjetivos, mais que recursos materiais, técnicos e financeiros. Um romance de roteiro previsível, com pequenas variações, desastres ocasionais e algumas aventuras de sucesso.

Sinto frustrar o leitor, mas nossa história não acaba aqui. Nosso romance continua de acordo com as contradições objetivas da realidade. Conforme cada um dos protagonistas, contribuímos para seu desfecho, a partir de onde vivemos e atuamos. O romance empresarial, por sua vez, vinculado por natureza ao modo de produção vigente, não escapa a estas contradições. Prefiro deixar os personagens agirem com liberdade e destreza o bastante para escreverem, eles mesmos, um livro mais interessante do que os best-sellers que abarrotam as prateleiras das livrarias, o coração e a inteligência dos leitores menos atentos e exigentes. Poderia ser um romance policial, de aventura, ficção cientifica, futurologia, ou, ate mesmo, de terror tipo, “Doctor” Frankstain. Vampiros? Existem, embora pareçam “fingir de mortos para viverem felizes”. Podem estar dormindo no umbral da organização sobre seus próprios pesadelos nos porões da consciência ou se passem por invisíveis nos horários convencionais dos expedientes e de trabalho. Talvez esses romances não conquistem certos tipos de leitores. Aqueles movidos pela paixão que ilumina e não cegados pela competitividade, pela ganância, pelo egoísmo individual, de grupos ou de classe, bem ao estilo neoliberal, Acrítico e sem limites. Tal como você, já vi este filme, antes.
Plim- Plim. ”The End”.