sábado, 15 de janeiro de 2011



o discurso das águas


o mundo todo quer entender o discurso das águas
o curso de seu vocabulário rio
estreito dicionário
em sua fúria de destrutivos pronunciamentos
os hermeneutas procuram o sentido oculto na lama
nas dores de Jó
nas ruínas do jardim do Édem
os semióticos analisam vestígios
o que do litígio urbano sobreviveu
os arqueólogos dialogam
com os bombeiros em tristes escavacações
de sentidos e sentimentos
os políticos proclamam
prometem
se acusam
denunciam falhas do sistema
falsas interpretações
eternos dilemas
adiam verbas
conjugam verbos de intransitivo amor
de pretéritas emergências e decisões
os comunicadores usam e abusam
da sede de verdade
dos homens incrédulos
os marqueteiros de plantão
faturam com a audiência
e novas campanhas pluviométricas
os homens de negócio negociam novas situações
calculam os pontos e as vírgulas
lêem como sabem e querem as ondulações das letras
nas vertentes devastadas
assassinam novos contratos e convênios
de conveniência mútua
os homens públicos ficam mais públicos
choram lágrimas de crocodilo
em nome do bem comum
os místicos fazem mágicas
acendem velas
queimam incenso para os deuses atléticos
inacessíveis e seguros
em seus reinos míticos
guarnecidos por anjos
por tropas de elite
as companhias de seguro
ficam de olho no futuro ameaçado
enquanto isso as águas caem do céu
dos infernos das nuvens
dos telhados
assustam homens e bichos
aves e pedras
plantas e animais domésticos
arrebentam muros
furam paredes
derrubam casas
invadem igrejas
granjas
fábricas de brinquedos
templos e estádios

a temporada de chuvas continua
profetiza a moça do tempo
o serviço de meteorologia
no seu afã de dizer
as águas engolem escolas e bibliotecas
out-doors e placas luminosas
comem estradas e sinais de transito
espalham o vento do medo
sua lição de humildade

o livro da natureza ao se deixa ler
pela razão humana
que a si mesma se arrasa

o discurso das águas se reproduz
em filetes e simulacros
em risos e tempestades de sentidos
saltam das páginas infinitas do universo
rugem rangem rasgam vomitam água e fogo
a ira de Netuno que tudo ununda
rolam com os cadáveres dos homens e das coisas
pelas encostas
desfilam com os mortos pelos morros amassados
pela ruas e avenidas mascaradas
ruflam tambores
entoam marchas fúnebres
pelos becos e esgotos
pelos canais todos da convencional incomunicação

as bocas anônimas cantam hinos
solidários
juntas se iluminam

as águas e sua linguagem insípida
inodora encantadora polissemia de enigmas
com seu discurso indecifrável
tudo liquida
tudo esmaga com sua força natural
sem regime
sem lei

nada estanca o sofrimento
o silêncio do Planeta sonâmbulo
diante de tantas palavras e idiomas

o mundo todo quer entender
o grito solitário
o discurso das águas sem sono

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