terça-feira, 6 de março de 2007



Universidade Brasileira
Liberdade, Liberdade,
abra as asas sobre nós!


Uma conversa com estudantes de diversos cursos, em nível de graduação, mais algumas leituras e pesquisas, tiraram-me o sono por um bom tempo. Trata-se da sempre polêmica questão da liberdade de expressão do pensamento e da autonomia do conhecimento dentro das escolas de ensino básico e nas Universidades.
Os alunos, com a ansiedade, a falta de jeito e o tom de rebeldia naturais e saudáveis quando se trata da fase estudantil, reclamaram da quase ausência de liberdade para exporem seus pensamentos, manifestarem seus desejos, defender seus direitos de estudantes e de cidadãos. Em suma, mostraram, sem o saber, o ambiente árido e hostil em que vem se transformando, de alto a baixo, o sistema educacional brasileiro ao longo das últimas décadas.
A brevidade deste artigo não me permite analisar, em detalhes, as causas e as conseqüências deste conflito histórico, quando a escola, não abdica sob nenhuma hipótese, de seu papel – já que sua função deveria ser necessariamente outra – de privilegiado aparelho ideólogo do estado. Dimensão que os atuais estudantes, alienados como estão de si, da cultura e da história, nem de longe desconfiam. Apenas se mostram insatisfeitos, desinteressados e, no caso dos mais sensíveis, instintivamente mais perceptíveis, tristes e frustrados.
Isto acontece, vale a pena ressaltar, no advento das novas tecnologias e no seio da tão auto-suficiente e ciosa de si sociedade que se autodenominou era da informação e do conhecimento. A contradição parece obvia e absurda, mas é real. Coisas assim, sob lutas e protestos, em regimes de exceção, como foi o caso das décadas de 60 e 70, no auge da Ditadura Militar, regime autoritário que deve ter atrasado a história e a construção da democracia e de autonomia do povo brasileiro em pelo menos um século.
Pelo visto, já se estão colhendo os espinhos dessa “lavoura arcaica”. E o pior, uma lavoura que está aos cuidados de uma geração de docentes vinda de um ensino básico e uma universidade desfigurados pela ação destrutiva e hegemônica do neo–liberalismo.

Depois de falar de sua formação acadêmica, intelectual e de cidadã, Marilena Chaui, no artigo “A Filosofia como vocação para a liberdade” analisa as mudanças (involuções, grifo meu) ocorridas no âmbito da Universidade Brasileira. Transformações que, de certa maneira, confirmam o péssimo estado em que se encontra o ensino básico, a julgar pelo perfil dos alunos, que chegam aos cursos superiores – a maioria despreparada - semi-analfabetos funcionais, sobretudo em termos sócio-político e cultural.
No mesmo artigo, Chaui divide, de forma esquemática, o processo de degeneração da Universidade Brasileira, em três etapas. Universidade entendida como espaço dinâmico e de diálogo democrático e interdisciplinar, permanente e vivo entre ensino, pesquisa e extensão.Embora seu foco seja a universidade pública, em essência suas críticas, e talvez com maior razão, podem ser aplicadas à boa parte das universidades particulares. Estes sim, meros pontos de venda, balcões de oportunidades, passarelas para a moçada bacana desperdiçar tempo e dinheiro.
O primeiro momento da destruição, diz a filósofa da liberdade ainda sob a ditadura, deu-se com a imposição da “universidade funcional”, oferecida às classes médias para compensá-las pelo apoio à ditadura, oferecendo-lhes a esperança de rápida ascensão social por meio dos diplomas universitários. Foi a universidade da massificação e do adestramento rápido de quadros para o mercado das empresas privadas instaladas com o “milagre econômico”.
A partir dos anos 90, sob os efeitos do neoliberalismo, deu-se a nova fase destrutiva com a implantação da “universidade operacional”, isto é, o desaparecimento da universidade como instituição social destinada à formação e à pesquisa, surgindo em seu lugar uma organização social duplamente
privatizada: de um lado, porque a serviço das empresas privadas é guiada pela lógica do mercado; de outro, porque seu modelo é a empresa privada, levando-a a viver uma vida puramente endógena, voltada para si mesma como aparelho burocrático de gestão, fragmentada internamente e fragmentando a docência e a pesquisa. Essa universidade introduziu a idéia fantasmagórica de “produtividade acadêmica”, avaliada segundo critérios quantitativos e das necessidades do mercado.
Ao ler esta análise de Marilena Chauí a voz e as queixas daqueles estudantes ganharam vulto em minha consciência de educador e de cidadão. De intelectual e artista atento, sempre preocupado com uma questão fundamental: o desenvolvimento material e espiritual do ser humano e o pleno exercício de sua liberdade, como indivíduo político, cidadão do mundo. E, como tal, eticamente responsável por si, pelos outros e pelo futuro do mundo onde vive. Apesar de todas as ameaças que pesam sobre o mundo e sobre a humanidade.
Tomo, aqui, o conceito de liberdade formulado por Albert Einstein no texto “Sobre a Liberdade”. Por liberdade, diz, entendo as condições sociais, tais que, a expressão de opiniões e afirmações sobre questões gerais e particulares do conhecimento não envolvam perigos ou graves desvantagens para seu autor. E essa liberdade de comunicação, indispensável para o desenvolvimento e a ampliação do conhecimento científico; deve ser garantida por lei. Mas lei, por si só, segundo Einstein, não basta. Daí, “para que todo homem possa expor suas idéias sem ser punido, deve haver um espírito de tolerância em toda a população”.
Na visão do cientista as escolas exercem importante papel na construção desta visão liberaria. Para ele, “as escolas, podem interferir no desenvolvimento da liberdade interna (de cada indivíduo) mediante influências autoritárias e a imposição de cargas espirituais excessivas aos jovens. Mas, por outro lado, elas podem e devem agir afirmativamente, de forma “a favorecer essa liberdade, incentivando o pensamento independente.
É que ainda de acordo com Einstein, o progresso da ciência pressupõe a possibilidade de comunicação irrestrita de todos os resultados e julgamentos - liberdade de expressão e ensino em todos os campos do esforço intelectual.

De certa forma, as referências feitas por Marilena Chauí, ao pensamento e recomendações pedagógicos do seu mestre Bento Prado Jr. que a acompanham e alimentam ,ainda hoje, seu desejo de conhecer a realidade e sua vocação libertária encontram eco nos ensinamentos sobre o papel da Escola e a postura ética dos autênticos educadores. Com meu mestre, lembra a filósofa professora, descobri que o ensino é formador quando não é transmissão de um saber do qual nós seríamos senhores, nem é uma relação entre aquele que sabe com aquele que não sabe, mas uma relação assimétrica entre aquele cuja tarefa é manter vazio o lugar do saber e aquele cujo desejo é buscar esse lugar.
É para este aluno atento e interessado que dedico este pequeno artigo, em cujas entrelinhas, habitam suas angústias frente ao excesso de controle burocrático e o autoritarismo professoral de que detém um certo poder em nome de um incerto saber.
Tudo indica que com a sociedade do conhecimento e a era da informação contraímos uma dívida histórica com o homem contemporâneo; tiraram-lhe a esperança e a utopia; não cumpriram sua promessa de libertação; e, ainda, por cima, promovem, em escala planetária, como legítima realidade e necessidade, o individualismo, a competição, o autoritarismo e a arrogância. A Universidade, por seu lado, que sempre se orgulhou de ser um Campus, isto é, um espaço privilegiado de resistência e de luta contra toda forma de opressão, vem se transformando, ela mesma, em um sistema burocrático, fechado, fragmentado e acrítico e, por isso mesmo, autoritário e opressivo. Um lugar marcado, não por sua excelência científica, de cunho cultural e humanista , mas por ser um mercado suntuoso, reprodutor de signos envelhecidos e negociador de traiçoeiros e imponderáveis poder. Um lugar sem atrativos, onde o saber perde todo o seu sabor! E anacronicamente, teremos de cantar como nos piores tempos da história deste país, Liberdade, Liberdade, abra as asas sobre nós!



Dia Internacional da Mulher
Amor, a palavra feminina.
João Evangelista Rodrigues
“ Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: uma lucidez vazia, como explicar?”
Assim Clarice Lispector inicia seu poema , A lucidez perigosa. É a esta lucidez que gostaria de ter acesso, como mediador da palavra feminina, para, sem pretensão nem preconceitos de qualquer ordem e ordenamentos, tecer esta homenagem em comemoração do Dia Internacional da Mulher.
Ao escrever este texto penso em todas as mulheres do planeta e no longo processo de instituição e inscrição do feminino no universo econômico, político e sócio-cultual bem como na luta imemorial pela sobrvivência e emancipação do ser humano. Trajetória marcada, em cada período, por características distintas, momentos de glória e de luminosidade e longas eras de sofrimento e obscuridade impostos à figura feminina. Natural e culturalmente falo, escrevo de outro lugar.Falo de um espaço vazio onde a imagem da mulher, por mais que tente dela me aproximar e tocá-la, é sutil e fugidia como reflexos de um espelho e ancestral.São aproximações e fugas que, sucessivamente , ampliam minha admiração e meu desejo de sentir, não de deter, a essência do que escapa.
Falo de certa forma, desse lugar marcadamente masculino aludido por Adélia Prado, no poema Moça na Cama, evocando a presença paterna:
“ Papai tosse, dando aviso de si, vem examinar as tramelas, uma a uma. A cumeeira da casa é de peroba do campo, posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir, tomo a bênção e fujo atrás dos homens, me contendo por usura, fazendo render o bom.”
Em meio a este extremo cuidado e controle e zelo moral e social, a mesma Adélia, diria suspirando: “Jamais o seu peito mais duro que o aço. Palpita a não ser a louca ambição.Supõe-se - orgulhoso - que é soberano, Que todas as belas vassalas lhe são! Mais falso que a brisa que as flores bafeja, Se mil forem belas... a mil finge amar...”
Estranha contradição. Vindo deste mesmo universo machista de que fala a poeta, sinto que será preciso mais do que a consciência da situação e do importante papel que as mulheres ocupam,hoje, na sociedade, para compreender com lucidez e superar a enorme distância que separa homens e mulheres. Pois, nos dia que correm, ambos vem se tornado cada vez mais presas frágeis e fáceis de um modo de ver e de viver que os transforma de seres potencialmente amorosos e complementares, em fatores de produção e consumo, altamente competitivos e desencontrados.
Talvez por isso, Hilda Hilst prefira não sublimar nem romantizar essa relação e busque manter a íntima clareza e liberdade no seu gesto amoroso ao dizer:
“Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua de estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo.”
E a partir de sua constatação se posiciona enfaticamente como mulher de seu tempo, atenta e participativa; É este mesmo estranho amor, em campos opostos, já codificados e gastos, que Lya Luft procura exorcismar e desencantar através do poder mágico das palavras sempre fortes e sinceras quando se tratam de sua escrita.
“Estranho também esse amor,, com hora marcada para a mutilação da morte, o minuto acertado, e o fim consultando o relógio para nos golpear.”
Mais suave e venturosa, entretanto, é a visão de Cecília Meireles, quando escreve o seu
“Barqueiro, que céu tão leve! Barqueiro, que mar parado! Barqueiro, que enigma breve, o sonho de ter amado!
A história feminina, pelo menos boa parte dela, pode ser entendida ao se contemplar as marcas do tempo e da traça no vestido que Adélia guarda/esconde com carinho no armário de seu marido.
“É só tocá-lo, volatiliza-se a memória guardada. “

Já Florbela Espanca manifesta suas dúvidas e cismas sobre os mistérios do amor e, lírica, interroga,
“Digo pra mim: de nós dois Quem ama e quem é amado?...”
Mas que amor é esse que move e faz tudo mover, que nasce, morre , remorre e nasce cada manhã? Que formas novas de relacionamento estão surgindo com os sintomas atuais de um tempo comprimido, tenso, fragmentado, virtual e volátil? Ainda haverá tempo pra homens e mulheres, de todas as condições sociais, e independente de suas opções amorosas, dos amantes aprenderem um com o outro o “fermoso assunto” o sempre urgente e fervoroso amor? Que novos paradigmas estão nascendo e que dóceis ou cruéis conseqüências podem nos revelar? Será que teremos de cada um a seu modo aprendermos “a arte de viver sozinho”, como tem sido alardeada através da mídia e da Internet?

Seja como for, tudo indica que a noção de cara metade está definitivamente superada pelas condições pós-modernas. E que, nenhuma forma de agressão e violência, de exploração, de cara de pau, poderá ser tolerada, atualmente, nas relações humanas, sobretudo, nas que dizem respeito ao relacionamento amoroso entre homens e mulheres. O amor ainda é possível? Será possível/empreender a cada manhã/ um novo gesto /além da gesticulação da língua / da mão vazia / entre a xícara de café/ e a fruta-pão/ o que de novo poderá surgir / no desvão da janela/além do sol antigo/do instintivo movimento de tudo/sentimento estático se descreve o mundo que se dobra se repete/sobre si desaparece?

Mergulhado na dúvida e sem ter conseguido atingir a lucidez desejada, tento desvendar os passos da poeta Ana Cristina César.
“Era inverno e a mulher sozinha... Escureciam as esquinas e o vento uivando...

sábado, 17 de fevereiro de 2007

Triálogo I

Do prazer de voar com o livro
ao imaginário museu de tudo


A vantagem de vir ao mundo, após milênios de história, é já encontrarmos o mundo bastante modificado pelo engenho e arte do homem. Impossível seria enumerar essas modificações. Além do fogo, das pirâmides e dos Jardins Suspensos da Babilônia, pode-se, sem medo de erro, incluir a água potável, o avião, a penicilina na galeria das invenções. A metafísica, a literatura – a poesia - a física mereceriam lugar de destaque. Para os mais radicais e intolerantes, esclareço que usei a palavra metafísica como metáfora de Filosofia. Sei que não se trata de um conceito exato, mas como não posso detalhar, aqui, os meandros da história do pensamento humano, desde antes dos gregos, resolvi correr o risco da imprecisão. Funciona como um buraco para puxar assunto. Nem sempre dá certo, mas...
Para simplificar talvez fosse aconselhável buscar a raiz de tudo o mais.Ressaltaria, neste museu, apenas a palavra, a linguagem, os signos e as imagens de toda a arte e conhecimento construídos pela humanidade. Incluindo aqui as ruínas e as desconstruções. O que já foi feito e o já desfeito. O que existe, teima em resistir. Aquilo que existirá e o que será impedido de existir. Seria justa e razoável esta opção, pois, sem dúvida, a linguagem está na origem e na trajetória de toda a História do homem. Não a linguagem abstrata, mas o que desta linguagem floresceu dentro e fora do coração do homem.

Que o leitor não se zangue pela minha última escolha. Junto com as cerâmicas primitivas, as telas dos pintores e dos poemas e músicas , de todas a s raças e gerações, colocaria sob luz clara um objeto admirável e único:o livro. Pasmem aqueles que não descobriram, ainda, o sagrado hábito da leitura. Aqueles que, ao invés de bibliotecas, constroem suntuosas garagens. Sei que muitos pesquisadores e futurólogos alardeiam a morte do livro, o seu fim como instrumento e objeto de mediação das trocas, do prazer e do conhecimento. Ao contrário, imagino que o ambiente contemporâneo é espaço fértil para abrigar todas as formas de fazer e de saber. Cenário móvel capaz de estimular a convivência dialogada entre diferenças e pluralidades. No campo midiático, a despeito de suas especificidades, não acontece de outra maneira. Veja um exemplo singelo. Não estou aqui, agora, escrevendo a favor do livro, um texto no computador que será veiculado pela rede e quantos livros já surgiram e surgem a todo instante falando sobre a sociedade da informação e do conhecimento.
Ah! O museu. Boa lembrança esta de se criar um espaço bem atraente para se colocar nele todos os depoimentos e argumentos escritos ou gravados a favor deste objeto sedutor, ao mesmo tempo, esquivo e silencioso. Em defesa do livro saíram filósofos,escritores, cientistas, poetas, compositores. Juntos, formariam um belo acervo.
Crítica arguta, Susan Sontag observa que entre livro e leitor há uma relação de desejo. Além do conteúdo, da edição, da encadernação, da ilustração ou do papel, observa a ensaísta/leitora/autora, o livro exerce sobre os seus leitores aquilo a que poderíamos chamar uma verdadeira aeração física. É, portanto, objeto de cuidadoso carinho. Falando sobre o ato de ler, Michel Foucault coloca o livro como o ponto onde se inicia o processo de transformação e de enriquecimento do leitor “Trata-se, particularmente, de interrogar nossa relação com o livro, com a obra”.
Se se considerar o livro como a imagem que comporta e transporta a linguagem, é justo apropriar-se do que fala Victor Chklovski , aludindo a um tipo especial de imagem relacionada à arte: “o objetivo da imagem não é tornar mais próxima de nossa compreensão a significação que ela traz, mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão, e não o seu reconhecimento”
Tudo sugere que o livro, a despeito de sua grandeza na constelação do saber, não existe por si só. Dentro e em torno dele gravitam não só idéias e imagens verbais e não-verbais, mas mundos reais e imaginários, personagens e geografias, autores, editores, leitores. Com estes últimos o livro e a leitura representam possibilidade reais para se criar laços através de uma relação de prazer e de liberdade. Os homens passam, o livro-pássaro,poderíamos parafraseando, reverenciar o para sempre adorável Mário Quintana. Para Borges, o encontro entre o livro e o leitor dá origem a um “faro estético”.
“Mudamos incessantemente e é possível afirmar, com Borges, que cada leitura de um livro, que cada releitura, cada recordação dessa releitura renovam o texto. Também o texto é o mutável rio de Heráclito”.
E Ramón Gómez de La Serna, nas suas Greguerías dizia:?O livro é um pássaro com mais de cem asas para voar?. Temos apenas de saber potenciar o seu vôo... Este o desafio: criar asas feitas livros e voar com eles, sem perder a direção da Terra. Da linguagem, a casa de todos, do mesmo e infinito livro.
Triálogo II
Sua excelência o leitor ou
os segredos da boa leitura

Quais os segredos da boa leitura? Você considera-se um bom leitor? Dar respostas satisfatórias a estas questões é desafio sem fim. Na ambiente acadêmico, lugar de vaidosas disputas, elas causam controvérsias e discórdias. Narizes torcidos! Entre intelectuais e artistas das diversas áreas, provocam apaixonados debates e confusão. Quanto ao leitor, ou melhor, aos leitores, já que existe uma gama de classificações desse animal exótico e fugidio, penso que estão pouco se lixando para essas querelas. O problema é que os segredos da boa leitura envolvem diretamente esta figura polêmica e invisível, heterogênea e dispersa. Não raro, dispersivas.
Não quero ser chato, mas antes de passar a frente, de tatear os meandros da leitura, gostaria de saber em que condições você etsá lendo estas linhas,m agora. Estaria confortavelmente acomodado em uma destas, que mais parecem camas. Ou estaria mesmo deitado? Vou ariscar um palpite: excelentíssimo leitor deverá estar em algum bosque imaginário. Sozinho. Embebido de pensamentos e imagens que nunca virão à luz. De pé, na fila de algum destes desaforados bancos.Não, isto não desejaria jamais para nenhum leitor, mesmo aquele mais ranzinza e detalhista. Esteja onde, como e com quem estiver quero lhe dizer mais uma vez que sem você todo texto escrito, independente do suporte, não passaria de um defunto vencido. Não precisa ficar intimado com meus elogios. É uma questão de justiça, uma verdade imposta pela realidade. Não lhe faço nenhum favor, portanto! E tem mais não estou me referindo só a esta simpática pessoa com quem estou conversando, agora, mas do outro leitor, de seu duplo, um personagem literário, co-participe da construção deste texto que está demorando a se desenrolar. O jogo, como se vê, é mais interessante e complicado. Um quebra cabeça sem fim.
Você, meu amigo, se me permite trata-lo assim, apesar de nossa tão curta convivência, é deveras importante. Importante e misterioso. Tão misterioso que os estudioso, os ditos cientistas, com todo o meu respeito, não conseguem entrar em um acordo quanto a sua identidade. Daí que para lhe dar um nome, fazerem uma denominação exata e digna de sua magnitude, inventam muitos apelidos, para dizer praticamente o mesmo fenômeno. Você pode se situar, por exemplo, entre os leitores virtuais, leitores ideais, leitores-modelo, superleitores, leitores projetados, leitores informados, arquileitores, leitores implícitos, metaleitores... Gostou? Se você me acompanhou até aqui por curiosidade, consideração ou por puro prazer, arisco lhe dar mais um epíteto: que tal leitor-paciente, “leitor-fashion”? Em qual destas classificações você acha que se enquadra? Não, não precisa me responder. Aqui, toda a decisão é sua. Com e em todos os sentidos.
Neste momento, no ato mesmo da leitura deste texto/duscurso/midiático o que estararia pensando o leito? O meu leitor, se assim posso dizer. Estaria sério? Atento? Interessado ou doido para chegar ao final do caminho? Curioso para saber aonde, após tantas encruzilhadas, pistas e atalhos, essas palavras em rede pretendem levá-lo. Não se iluda com as promessas que nem cheguei a formular ao longo deste escrito, pois, podem não passar de moinhos de vento, de conjecturas. Nada que mereça crédito incondicional. Antes duvide. Pergunte. Levante. Vá ao dicionário. Ao banheiro, se precisar. Tome café. Descanse os olhos. Olhe pela janela da sala, do texto. Se necessário use faca, estilete, canivete, mas remova os entulhos, levante as linhas e observe bem entre as malhas da rede. Discuta o que aqui não se mostra com sua esposa, irmão, namorada, amigos. Se estiver sozinho, não se perturbe. Discuta com você mesmo. Seja exigente. Não continue aí feito uma taça de cristal à espera de bom vinho. Entregue-se à leitura. Embriague-se. Deixe-se prender. Voe se assim o desejar.
Os segredos da boa leitura, se você esta me ouvido e tentando-me, sobretudo, naqueles pontos sobre os quais desentendemos, não existem. Pelo menos como em um catálogo de endereços, com seguras referências. Os segredos da boa leitura estão no ato de ler. No processo de caminhar, nadar, pedalar voar sobre a superfície lisa ou acidentada da linguagem e da língua, de espectros diversos e enigmáticos. Talvez por isso é que certa vez escrevi: a língua pátria me manda/a lingua pétrea me funde/a língua mátira me tece/a língua rosea me fura
a língua amada me lambe/a língua viva me mata/a língua morta me chama/a língua me deixa à míngua/e vela me venda me ilude /
a muitas milhas de mim/outras línguas me procuram. Língua e linguagem que possibilita a construção de mundos, nossa própria – imprópria algumas vezes - construção e reconstrução diária e permanente. Tornamos-nos homem, ser de consciência, equivale a dizer, ético, pela linguagem. Não só pelo diálogo amoroso, mas também pelos conflitos que ela gera. Não só pelas contradições engendradas no seu útero, mas, sobretudo, pelo consenso e possibilidades de superação que a linguagem da vida traz em si.
Ja está cansado, o leitor? Esse leitor que para Proust O leitor, para Proust, era um amante dos livros, da boa leitura. Espécie em extinção, que tudo pretere pelo prazer de página manchada de letras e ilustrações. De alguma, qualquer superfície marcada pela palavra oral e ou escrita, cantada ou declamada. Fixa ou animada. A linguagem é um cinema, auto-estrada de mão dupla. Seja devorada silenciosa, sinuosamente. Em solidão. Mas, adverte o escritor, “:...se nos acontece ainda hoje folhearmos esses livros de outrora, já não é senão como simples calendários que guardamos dos dias perdidos, com a esperança de ver refletidas sobre as páginas as habitações e os lagos que não existem mais”.
Em breve chegaremos ao final deste texto se é que algum texto tem fim. Cansado estou eu que, depois de concluir essa conversa silenciosa, perdi boa parte e, aqui estou, de novo, reescrevendo o já descrito. E, da mesma maneira que não se faz duas leituras iguais, não se escreve-reewscreve um texto de maneira semelhante ao original, jogado no lixo ou perdido por uma dessas perversões da tecnologia.
Você pode estranhar, mas a leitura, apesar da novidade contemporâneas, ou por causa delas, possui algo de mágico. De magia demasiadamente humana, penso! Seres de leitura somos condenado-abençoados a tudo ler. Decifrar, quem sabe a vida. O escritor João, o outro, Guimarães, mágico decifrador dos sertões de Minas e das mimosas Rosas da linguagem diz: "A vida também é para ser lida". E sendo o viver muito perigoso, segundo o João, posso intuir: ler, de leitura viva e atenta, é perigosa empresa. Sertão se afunda. Abre-se em buritis e rios do sem sentido. Oferece-se à leitura. Tudo se lê.Eis o engenho e a maldição do homem. O escritor e poeta Flávio Carneiro salienta: “Pode-se ler um romance ou um poema tanto quanto se pode ler no rosto de alguém um traço de dor, um sorriso, ou uma roupa, o céu, um jardim". Tudo são “caminhos que se bifurcam”, planetária biblioteca cósmica. Tudo de signos e silêncio se tece. O sertão engole o sol.
Tiáogo III

Ler e amar exige paixão

João Evangelista Rodrigues

A leitura e o amor exigem posições sempre novas e confortáveis. Exige paixão. Não se lê e não se ama como se estivesse comendo um “cachorro quente” em um fim de rua de subúrbio. Pensando melhor, confortável é pouco. As posições devem ser agradáveis. Sugestivas e prazerosas. É isto mesmo que estou querendo dizer. Você, leitor experiente e sensível, acertou em cheio! O ato de ler e o de amar têm em comum a paixão e o deleite. Ler sem paixão seria assim como fazer amor sem prazer. Sem desejo. Compulsoriamente.

Dois motivos levaram-me a escrever as linhas acima. O primeiro deles foi a modo que vi um adolescente lendo uma revista de variedades, que ficava entre xérox de livros didáticos. Textos extraídos da Internet e um monte de apostilas rabiscadas. O segundo motivo e, este me veio à tona, ao lembrar-me de como Ítalo Calvino age, ao transformar em sua narrativa, estilística e estrategicamente, o leitor concreto em um personagem ficcional, imaginário. Portanto, no romance pós-moderno, de raízes borgianas, os dois leitores são, ao mesmo tempo, um e outro. Assim, para o leitor que lê o livro, para o leitor que está lendo este pequeno ensaio sobre o ato de ler, não será fácil distinguir , com nitidez, o lugar onde ele realmente vive e se move: na vida real, com seus condicionamentos e aborrecimentos concretos, ou em um mundo virtual, ficcional. Em caso de dúvida, o leitor terá que resolver sozinho, esta “parada”. A bem da verdade, sozinho, de todo, não. Ele e o texto que leva nas mãos. Seja o livro de Calvino – se você ainda não leu, vale a pena ir ao encontro dele – ou em companhia deste rápido caso de amor com as palavras derramadas aqui, carinhosamente.

Ah, o adolescente, você ainda se lembra dele? Claro, ele estava lendo uma revista de variedades, de tal modo extravagante, que acabou por me chamar a atenção. Não que quisesse intrometer-me nos hábitos do moço, que mal conhecia. A revista estava longe dos olhos, no chão, entre as pernas, em meio a uma bagunça visual e sonora formada por CDs, DVDs, celular, garfo, prato com resto de macarrão, xícaras e copos de plásticos sujos de refrigerantes. O caos era maior porque o som e televisão do quarto estavam ligados ao mesmo tempo. No primeiro, tocava, a todo volume, uma destas despretensiosas “baladinhas” americanas, sem estilo nem personalidade. Na TV, o noticiário do trágico desabamento que abalou a cidade de São Paulo e sensibilizou todo o país. Para completar, a garota que morava no apartamento da frente esganiçava, frenética, o nome de nosso protagonista. Pela insistência e altura dos gritos, ela precisava falar com ele qualquer forma. Nosso leitor, por sua vez, não estava nem aí, para nenhuma destas coisas.

Explicados os motivos conscientes, que me levaram a este texto, deixo o leitor em paz para que ele desfrute o pouco que falta destas páginas.

Assim inicia o romance do italiano, nascido em Cuba: “ Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: "Não, não quero ver televisão!". Se não ouvirem, levante a voz: "Estou lendo! Não quero ser perturbado!".
O adolescente, sob luz fraca e nebulosa, olhava desinteressadamente, para a revista. A mocinha quase se rasgava de tanta gritaria. Nunca se viu coisa igual. Queria mostrar o novo modelo de seu celular seu colega de faculdade. Nosso jovem leitor, por seu turno, seria incapaz de relatar, de repetir ao menos, uma só passagem da leitura. Mal decorou a cor, o nome da figura principal e a marca da grife que, orgulhosamente, exibia na parte traseira das calças.

Escolher a posição correta par ler exige espontaneidade e criatividade. Em pouco tempo, o corpo se cansa. Acomoda-se. A leitura, por mais interessante ou necessária, em alguns casos, torna-se pesada, chata, cansativa. O leitor acaba se dispersando e lá se foi o essencial do que lera.
Para seu leitor/protagonista, para o leitor concreto, já com o livro dele entre as mãos, Calvino sugere: “Escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido, encolhido, deitado”. Deitado de costas, de lado, de bruços. Numa poltrona, num sofá, numa cadeira de balanço, numa espreguiçadeira, num pufe. Numa rede, se tiver uma. Na cama, naturalmente, ou até debaixo das cobertas. Pode também ficar de cabeça para baixo, em posição de ioga. Com o livro virado, é claro.
A esta altura dos acontecimentos, a revista ficou jogada entre os variados objetos. Desprezada. Entretanto, o autor de “Se o viajante...” não perde a esperança em seu leitor, no caso , o nosso, e oferece-lhe mais uma sugestiva opção, em tom de lúdica ironia: “manter os pés levantados é condição fundamental para desfrutar a leitura”.E completa, “regule a luz para que ela não lhe canse a vista. Faça isso agora, porque, logo que mergulhar na leitura, não haverá meio de mover-se.
O ato de ler mereceu a atenção de muitos outros escritores/leitores, antigos e contemporâneos. Machado de Assis era mestre na arte de envolver o leitor de seus romances, contos e poemas.
Outro, foi Rilke, o autor de “Carta a um jovem poeta”. Profundo e sensível, como era, escreveu: “Quero viver como se o meu tempo fosse ilimitado”. Quero me
recolher, me retirar das ocupações efêmeras. “Mas ouço vozes, vozes benevolentes, passos que se aproximam e minhas portas se abrem”.

O amor e a leitura se confundem no prazer das posições que o leitor/amante escolhe para ler e para amar. Na forma como a paixão se expressa e alarga o universo do leitor, real ou ficcional, no movimento íntimo e infinito das letras corporificadas e eternizadas pelo corpo e pelo espírito do homem. Gestos de leitura do amor. Ato amoroso de ler. Em todos os casos, a melhor escolha será sempre a do leitor.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007





dos acontecimentos

os jornais estão cheios de acontecimentos
mirabolantes manchetes
grandezas e mazelas
povoam páginas bem diagramadas
acidentes e assassinatos
terremotos
super-staras
falências e top-modls desfilam
entre liquidificadores e preservativos
carros importados
receitas culinárias
Fios-dentais e anúncios imobiliários

as palavras nada dizem
além do que dizem
morrem asfixiadas
embrulham dores diárias
carne no açougue
bijuterias na feira popular

outras mídias dão-lhes colorido
velozes e falsas
vorazes verdades
imagens esmaecidas
no mundo em movimento
as palavras se entorpecem
se evaporam

só no poema
a linguagem acontece e sobrevive

Caricatura feita por Júnios Heleno


o livro
o que é um livro

algo vivo
quadrado
retilíneo ou torto
substantivo concreto
objeto de luxo
subjetivo
subversivo à solta
espelho convexo
substantivo comum
ou só mais um inseto morto

o livro
o que é o livro

tijolo na estante
cicatriz na manhã gestante
reflexivo estojo
arquivo de espantos
relógio
colibri
polvo
animal mutante
gafanhoto ou corvo
cavalo de tróia
ou cavaleiro andante

seria o velho
invulgar farsante
se gabando de novo
um lago
um cisne
um elefante branco
inventário de nomes
água e fogo
caminho e fonte

seria o livro
magro ou gordo
privado ou coletivo
escravo ou livre
esse bicho sem olho

tem plumagem de vidro
o dinossauro
o rinoceronte

teria asas o livro
objeto passível de lucro
de desejo
de dúvidas
de roubo
de logro

absoluto ou relativo
fechado aberto ou definitivo
é quadrúpede ou bípede
águia ou peixe-boi
esse ovo de ornitorrinco

onde vive o livro
na mala de viagem
na sala de visitas
na biblioteca pública
no quarto de desejos
na paisagem à vista
na geladeira ou na gruta

pode-se ouvir
tocar
tamborilar
sambar
beber
comer um livro
quem escuta no escuro
o vento na planície
no labirinto

é venenoso ou intuitivo
provoca dor
medo ou alívio

cavo escavo cavo
secreto escriba escarafuncho
desesescrevo o livro
cerebral
incompleto e primitivo

de pedra
de barro
de papel
virtual ou de acrílico

definir não me atrevo
interrogar o infinito
o sol aceso enigma
o sonho em alto relevo
é loucura
vezo
é sina
é tudo
isto e aquilo
nada do que disse

teria asas o livro
não sei
desisto
não consigo

o livro o que é o livro

se você quiser falar com Deus
um brasileiro bom de bola
deverá aprender Hebraico
Grego ou Latim
Deus não fala inglês
em sua glória
detesta arrogância
não tolera “inglisias”
e nosso português faz dó
nem Deus entende - anda muito ruim

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Desenho de Heleno Nunes,
criado para a capa do CD
Andejo de Joacir Ornelas.


Dom Quixote a cavalo
não vê o chão
nem as patas do animal
mira moinho ns nuvens
dantesca cavalaria
na copa do penhasco se desmancha
tombam árvores
armas inimigas
o fidalgo contra o vento esgrima
corta de espada sombras e arbustos
Don Quixote não se curva
ao peso da armadura vence o visto
ouve som de sinos
a cavalariça elegante aplaude
sente sobre si o laurel da glórias
Dom Quixote não se ri
não se rende ao cruel enigma
destgemido avança

leal e livre cavaleiro se imagina

foto viagem

estou e não estou em minha cidade
fotograficando quando posso
quando passo em preto e branco
meu coração a limpo
quando invisível
me torno em olhar alheio
vejo as casas através da lente
elas não me vêem
vejo as moças através da lente
alegremente passam
carroças carros caminhões
cavalos e arreios
tudo passa sem futuro no presente
trabalhadores de pedra
estes pesam mais em minha mente

não estou e estou em minha cidade
a noite em arcos abre janelas transparentes

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007


o que procuras aqui não se enuncia
talvez em campos destruídos
em plantações queimadas pelo ódio
além quem sabe a mais pungente ausência
raízes secas em território de sal
estátuas mortas de gelo derretidas
estranhos assobios
procuras em vão inventas teu percurso
teu poema
o que não necessitas
honra e glória
poder de alquimista
puro ritual de formas

porque insistes em lembranças e memórias
em recordações sem data
Se a estrada se alonga em desvios
sinuosos e restritos

em vão acenas
ao que passa morto já está
tudo em torno guarda geme em sigilo
vestígios de escrituras
todas as sombras estão perdidas

não ti reconhecem mais neste cenário
os signos da inocência
as habitações e os lagos
a solene procissão do gado
sem água
nada em que possa refletir tua própria consciência
uma pedra que seja pedra
um pássaro que seja
um homem que não seja só reflexos
no espantoso pântano da página
no limo da língua

o que procuras aqui te denuncia
nenhum sonho na fronteira subsiste

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007


Balada de despedida ou uma
Crônica pela morte desejada

Não raro a cidade se assusta. Leva um choque. Para; Respira fundo, entre estarrecida e judiciosa. E não é para menos, pois, se notícia boa corre, notícia triste, voa. Isto acontece com mais freqüência do que se imagina. Quando, por exemplo, alguma pessoa - criança, jovem, adulto ou idoso, masculino ou feminino, rico ou pobre - despede-se desta vida, inesperadamente. Inexplicavelmente.

Nestes casos extremos, amigos, vizinhos, parentes próximos e distantes manifestam-se. Fazem-se presentes e solidários. A curiosidade e a indiscrição, entretanto, não sossegam o facho. Sussurram. Perguntam. Discutem. Levantam-se hipóteses as mais mirabolantes. Já o morto nada pergunta. Nada mais deseja, além do direito ao abandono e ao sossego. Ao esquecimento do corpo em leito sem amor. Sem compartilhamento.

Diante da morte, banalizada como está e, por isso mesmo, fator de banalização da vida em seus diversos níveis e aspectos, sabemos, é inútil, qualquer palavra. Tudo o que se disser, inclusive neste texto, não passa de conjecturas humana. Tardiamente formuladas. Mesmo assim, insiste-se, insistimos em falas, mesmo sabendo-as vazias de sentido, sem nenhuma repercussão, pelo menos no reino dos mortos.

Entre tantas falas perdidas no silêncio da casa, do velório, do cemitério, algumas podem assumir formas objetivas de questionamentos e preocupações subjetivas, particulares ou coletivas. Excluo, aqui, intencionalmente, questões cujas respostas levam em conta crenças religiosas, sejam elas quais forem. Este é fórum íntimo, sobre o qual não se deve interferir.

Prefiro olhar a questão da “morte desejada” ou mais diretamente, do “suicidio” de um ponto de vista humano, social e político. Poderia acrescentar poético, já que a poesia, em qualquer de suas fases, possui algo de religioso e místico, sem confessar fé, fidelidade, em nenhuma crença religiosa específica. Em nenhuma forma de poder. Este olhar sobre a morte, sobre a morte procurada através do suicídio, espantada como está, poderia perguntar: o que leva um ser humano a cometer tal ato. A caminhar na direção do imponderável e do sem volta? O que estaria ele pensando , sentindo, desejando, questionando, naquele momento da tomada de uma decisão tão radical? Estaria mesmo em condições plenas para pensar e decidir? Que liberdade e autonomia são estas do sujeito contemporâneo que lhe dão o direito de saltar da ponte da vida na contramão do tempo, cortando o fluxo vital que, até há pouco o animava e o fazia sorrir e chorar? Qual o tempo certo par se morrer?Qual o modo mais confortável, menos doloroso.? Quem detém o poder destas escolhas?

Continuaremos, naturalmente, mudos. Poeticamente, a morte tem sido motivo de muitos poemas, ora líricos e reflexivos, ora realistas e contestatórios. Mas, no “pé do toco”, como costumava
dizer minha Avó materna, na veia, não há nenhuma poesia no ato de morrer. Ou será que existe uma estética da morte, como quiseram provar, com a própria morte, alguns artistas e filósofos. Mas também não há nenhuma estética em uma vida sem graça, sem sonhos, sem perspectivas. Diria alguém: quem vive como boi, merece morte bovina. Mas gente não é boi, disto ninguém duvida. Mas este não é o caso;

Socialmente, do pondo de vista da cidade, a casa comum, dos cidadãos – pelo menos é isto o que, em sua essência, deveria ser uma cidade , fica no ar questões igualmente complexas e profundas. Será que a cidade, o conjunto do seres que nela vive - não soube acolher com afetividade a pessoa que partiu? Será que, na maior parte do tempo, não lhe foi indiferente? Teria exigido muito e oferecido pouco? Que valores regem a vida cotidiana da cidade, ciosa por produzir, consumir e se reproduzir de maneira autoritária , acrítica? Será que a cidade se recusa a se transformar para se adequar e atender aos anseios de todos os seus filhos? Estará surda, a cidade ou barulhenta demais para ouvir os lamentos e pedidos de socorro de seus habitantes?

Sejam quais forem as perguntas formuladas, diante deste “gesto brutal” as respostas e ações serão sempre doloridas e pungentes. Quem já sofreu na carne semelhante dor, sabe o que isto significa. À cidade, aos seus cidadãos, habitantes do mundo em transe cabe mais que a lamentação e a perda de um filho. Cabe avaliar sua própria dinâmica, os fatores que operam suas atividades cotidianas – econômicas, políticas, culturais, espirituais, educacionais, esporte, lazer - as opções e oportunidades que ela oferece. Como são compartilhados os espaços públicos e o sonho coletivo da população?

A morte , por suicídio, de um cidadão, de um dos habitantes da cidade, não diz respeito apenas à uma decisão pessoal, súbita, lúcida ou não. Envolve questões éticas, socias e existenciais. Não diz respeito apenas a seus familiares. Como sujeito singular, particular e coletivo, isto é social, a morte, sempre diz respeito a todos nós. Não é um problema só para quem decidiu morrer, como pode sugerir o famigerado individualismo, a competição e o pragmatismo da globalização triunfante. Nem mesmo as cidades de pequeno porte, “interioranas” estão livres deste flagelo contemporâneo, chamado, por muitos, orgulhosamente, de neoliberalismo.

A cidade, que gerou seus filhos, deve dar conta dos motivos que os levam a morrer. Assim, desta forma, tão inesperadamente. Tão desesperadamente. A questão da morte, em certas condições, torna-se um problema social, interdisciplinar, devendo envolver, por exemplo, médicos, psicológicos, sociólogos, pedagogos, educadores, instituições de ensino, empresários, administradores, instituições públicas e privadas. Toda uma rede de configurações e conexões, as mais diversas, honestamente pervertidas. Rígidas, preocupadas apenas com a pulsação do bolso direito. Raramente divertidas. Raramente preocupadas com uma vida de qualidade, vivenciada e compartilhada comunitariamente. A felicidade já não faz parte da nossa geografia urbana. Melhor seria, fosse-nos dado aprender com o jogo da vida.
Cai chuva fina. Fria. Um céu cinzento desaba sobre a cidade. Anoitece.

sábado, 20 de janeiro de 2007




um sentido outro outra verdade
por dentro do ovo ainda
identidade incompleta
pia o pintainho galanteia
profeta sem penas
protesta sobre a dor alheia
meio projeto de gente
galináceo bípede com fome
chora pia imagina
interroga o talvez poeta
o que será por fora
do planeta sem saída
o insurgente mundo
as máscaras do nome

a metáfora máxima da vida

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007



lugar de mulher é na cozinha
repetia minha Avó
a cada momento
entre a Singer tocada à mão
e outros afazeres domésticos

a mesa de jacarandá
a sala de jantar
o armário bordado de porcelanas

este foi presente de casamento
ganhei de meu padrinho

lugar de mulher é na cozinha
ecoava o aforismo
no canto do alpendre

eu tinha só quatorze anos
quando conheci o seu pai

no terreiro da cozinha
o engenho era um carrossel

no pasto da frente
o cavalo relinchava

trepadas na balança
voavam em desejos

os bezerros berravam de fome
o leite apartado

lugar de mulher é na cozinha

escondidas com seus primos
descobrem os primeiros mistérios
a manhã no porão da casa

lugar de mulher é na cozinha

pelos modos da lua
dobrada sobre si mesma
era só de silêncio e desejo
os corações femininos

a coruja branca na porteira do curral
minha Avó no seu quarto de viúva

lugar de mulher é na cozinha

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007


ser um só não me basta
me recuso
ser muitos é barra
dói pra burro
é muito confuso
como não sou besta
me divido em textos
nas dobras da linguagem
em ruas me esculpo
entre imagens em ruinas me oculto

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007


" o sentido do poema é o próprio poema”
Octávio Paz


o poema é a casa do poema
seu caminho e labirinto
sua meta
poesia e solidão
o poema grita no poema
a outra voz
o silêncio da leitura e da escrita

será preciso dizer
repetir
perguntar e responder
poema é luta
não dá lucros
luto diário
contra as erosões da vida
todas as dobras e manobras
todos os desmoronamentos
reais
marginais
imaginários


será necessário repetir
poeta é lutador de rua
sem luvas
mãos vazias
sua luta livre luta inglória

todo dia recomeça
insistente jaculatória

não se escreve para nada
o passado passou
para o presente jamais

quem consumirá um poema
se não está exposto na vitrine
se poema não mata fome
não rende juros
não redime

talvez futuro incerto
onde a palavra amora
talvez lugar deserto
onde morre o vocabulário

poesia salto no escuro
decifração de mundos
metáforas vistas por fora

olhos vendados
ponto perdido na memória

ainda é preciso dizer

o desmoronamento desta vez
abusou
virou a terra do avesso
engoliu gente em São Paulo
comeu carros
detonou
virou manchete na Geral
destaque na principal TV do país

o corpo gordo das letras
as imagens quebradas
o enquadramento perfeito
mostram a importância dos estragos
acoberta razões
coisa bacana
sem defeito
mais que Geralcilia quando passa
de sorriso batom
desmoroneando-se
toda se desmanchando de charme
sob a chuva
na Avenida Paulista

Geralcília é linda
muito mais do que Jandira
Olga ou Beatriz
o desmoronamento não
não vejo graça nenhuma
em seus músculos potentes
em seu sorriso sarcástico

é preciso fazer alarde
fazer média com o leitor
denunciar o acidente
chamar a atenção
vender jornal
grita alto o redator impaciente

o desmoronamento foi feio
monumental
e mais a foto do meio
aberta e colorida
completa o diagramador
via ficar sensacional

nisto Geralcília
perde em arrojo e perfeição
não dá pra competir com a mídia
haja coração

desmoronar é fato corriqueiro
faz parte do cardápio
de vários engenheiros
há várias gerações

eu mesmo me desmorono em letras
todos os dias
mais tímidas
é verdade
manchas de sangue no asfalto
na ladeira da página

a mulher do vizinho de frente
nem se compra a Geralcília
em quase tudo é diferente
é boa gente a coitada

a começar pelo nome
difícil de ler e de acreditar
Gerululia
parece trava-línguas
nem vontade dá
de falar

há tempos a honrada senhora
vem se desmoronando
aos poucos
devagar
por partes
inexoravelmente

os peitos de Gerululia
estão caídos
desede seu último carnaval
em 1968
um fevereiro de luto

cabelos compridos cobriam a bunda torta
sem molejos
Gerululia por cima não dá
é pesada
é estrábica e tem a língua presa

faz dó ver Gerúlúlia de sonsa
só não morreu
ainda
pela graça dos produtos de beleza

desmoronar neste pais é moeda corrente
não é privilégio
realmente
você desmorona
ele desmorona
desmoronamos todos
intermitentemente
queiramos ou não
diariamente

a Top-model
o atleta
a primeira dama
o artista
o presidente do hipódromo

desta vez foi dez
dez carros de luxo
ônibus carroça caminhão
motocicleta e carreta
tudo de cima para baixo
foi grave

isto é que foi desmoronamento
diz um curioso insensível
curtindo a festa
a zona
a zona total
o inferno em pessoa

domingo, 14 de janeiro de 2007



se o mundo continuar assim
chovendo e doido
não haverá tempo de pular fora

depois das Torres Gemias
o Iraque já desmoronou
vários impérios desmoronaram

o autódromo de Mônico
a Bolsa de Londres
a Torre Eifel
o Mahatman
tudo certamente irá desmoronar

pior desmoronamento é da alma
do grande espírito do Planeta





desmoronamentos - III

entre nós e os dilúvio vindouros
o governo promete novos desmoronamentos
bem projetados
com impacto ambiental zero
recursos é que não faltam
não faltam devotamentos

a secretária já preparou a agenda
gorda feito Geralúlia
eventos de grandes proporções
maior que show de rock
de música “breganeja”
ou forró universitário
coisa chic
alinhada
alienadíssima
o pau vai comer solto

a mídia do mundo inteiro
com certeza irá cobrir cada detalhe
o acontecimento global
irá fazer o maior carnaval

próximo á vila Paris
à Favela da Rocinha
a vida da população vira inferno

a redação do jornal
por enquanto
está suportando o temporal
o editor nervoso como sempre
grita

entre ossos e destroços
entre mortos e feridos
entre ferros e arames farpados
pouco se perde
ninguém se salva

meninos de deus jogam videogames com anjos da morte

Deus se diverte
ri da fragilidade da ignorância com insoência do Homem
limites


sem véus

limites sem véus

não suma meu amor não suma
não quero ver a sua sombra
seu vulto no final do túnel

não
não suma

quero a casa e o casulo
quero a casca e o sumo
as marcas e os furos
quero as máscaras sem fundo
quero mais que tudo
as jóias e os furtos
quero as rosas e os frutos
os espinhos e perfumes
todos os espelhos escuros
todos os deleites
todos os alfinetes e detalhes
todas as caras e bilhetes
todos os entalhes e enfeites
todos os leitos claros
sem armaduras nem escudos

quero tudo a que tenho direito
dentro e fora da lei
no reino dos homens surdos
dos homens estreitos

como não posso não querer
como a nada somos impunes

quero todos os aromas e abismos
todos os beijos hirtos todos os idiomas
todos os sorrisos

o paraíso
não
não quero

e como eu não me retrato
não me iludoquero todas as artes dramáticaso
invento oculto
contra todas as gramáticas
contra a literatura insossa
contra todos os defuntos
quero todos os templos
as tempestades futuras
quero tudo que pode ser e tocar
com dedos calmos e cegos
quero viver e morrer
os extremos e as espumas
todos os mistérios
todos os livros belos
todos os exemplares amarelos
todos os refugos e reflexos
todas as misturas espúrias
todos os elos

e como tudo é um
e diverso
quero todo o Universo
todas as faces e fases
todas as frases e orações

quero ver Paris
ver poemas e anúncios
andar de ônibus
conhecer os sumérios
ler os muros de Berlim
os murmúrios de Roma
todas as súmulas

fazer América não
prefiro ir ao inferno

e como tudo passa
quero todos os lastros
todas os bichos e pássaros
todos os rios e montes
todas as planícies
todos os mitos e mártires
todos as marés
a Baia de Todos os Santos
todas as plantas
quero tudo da vida sem edição prévia
sem amarguras todas

todas a suas vias de aceso
todas as recessões
todos os excessos de mão dupla
todas as pinturas
e como tudo ultrapassa
a paciência bovina
a ravina a raça a razão
não quero nada de graçanão quero traição
quero o que você imagina
toda a imaginação
não não quero insultos

nem reis e nem sultões
quero os medos e sustos
os semblantes de todos os sertões
todas suas luas
suas evocações

só não tolero ciúmes
e plumas
adoro chorinho e Jazz
adoro blues
boleros e tangos
e como não quero trapaça
jogo limpo e severo
não quero traça no texto
não quero tintas de melnem pretexto em vão
na hora do preloquero asas contra os céus
quero tudo em branco e preto
todas as irregularidades
sinuosas situações
coisas encantadas querotodas as ingratidões

e como não posso querer tudo
estanco de desejo as letras

meus territórios de sede
a jaculatória das águas
a prepotência dos deuses
as leituras dos mares
dos ares
do chão
todas as sagas
quero da vida todos os rumos
e histórias
todos os combates e combato
só quero lutas verbais
todos os ângulos
todos os túmulos
todos iguais

quero da vida todos
todos os ramos humanos
todos os cumes
todos os limites sem véus
não quero amos
quero todos os triângulos

como não posso tudo
nem tudo querer amar
como sou pele e osso
poço deserto e luar
como não posso ir mais longe
como esqueci o radar
não posso querer nem saber
só por mim mesmo voar
como com tudo não posso
a todo o mundo enganar
não posso por tudo em um verso
por tudo a perder
não quero ponto de chegada
não quero me versificar

como não posso escolher
vivo entre a terra e o mar

como não posso
só em mim mesmo morrer
ou em mim nadificar

lanço âncoras
no escuro
sem rédeas
para o sem lugar

não suma meu amor não suma

Xingó é minha amiga.Mora em Ponte Vila,
Distrito de Formiga, Minas Gerais,Brasil.

um homem que bicho estranho

tem pele feito porco
tem penas igual pavão

faz ferramentas
faz contas
faz amor por precisão
é doido de jogar pedras
ama-gama-desama-ama
morre de tédio e tesão
não raro sai a galope
cai do cavalo na cama

é ruim igual cobra
faz banquete
come sobra
usa palitó e gravata
computador
celular
usa porrete e facão
não raro entre em coma
é ladino igual raposa
finge ladra feito cão
faz lixo faz comício
por nada vira ladrão

adora espelho
pipoca
cinema televisão

é esperto igual coelho
inventou o fogo o barulho
a bomba a explosão
jogo de bicho de damas
que bicho estranho é o homem

depois de tanto inventar
a sujeira e o sabão
desinventar seu invento
reinventar a invenção
achou por bem registrar
ele mesmo a criação
por justo achou negar
a luz a voz a razão
e na prisão se trancar




é belo igual demônio
igual anjo pode ser
desenha canta faz novena
vê novela mexicana
faz de besta faz promessa
pra viver mais vive em vão
de asa delta ou sonho
voa de vez em quando

trabalha ajunta rouba e esbanja
come carne tem paixão
bebe muito come canja
mata o desejo com as mãos

tem pés igual tatu
cava buraco no chão
cava sua sepultura
criou o céu o inferno
o casamento a censura
a gaivota e o dragão

botou fogo na floresta
pôs rodas na bicicleta
vai ao velório protesta
rosna ri briga na festa
incendiou o planeta
a terra da promissão
se tem culpas
reza
se tem sede
bebe
se em fome
nem sempre come
se for necessário improvisa
bule bole bate e bale
dá o bote
sabe que nada acontece
pede perdão no cartório

não tem asas também poderia
ser completo mais um Deus
lê escreve faz poesia
diz que viu o que não vê
no lugar de asas e nuvens
preguiça nave navio
tem pensamento avião

faz casa funda cidades
arquiteta faz artes
gravura muro e carvão
mora na rua na mata
mata seu próprio irmão

imagine se o homem
mudasse o nome do não

o nome do que procura
do amor do tempo da chuva

se revertesse o invento
do desencanto da lua

ou invertesse o sentido
da seta do poste da rua

imagine se o homem
fosse só - vazia imaginação


o homem que bicho estranho

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007


seis propostas para o próximo momento

para o olho
proponho um céu azul
um pássaro em branco
o som de um blues

para o ouvido
uma sinfonia
uma tela de Picasso
viola caipira ao luar

para o nariz
um guardanapo de linho
um canteiro de flores vermelhas
um vinho milenar


para a boca
um sorriso crespo
a palavra amor
o melhor paladar

para o tato
o toque mais leve
a suite da pele
a plumagem bípede amarela

para o intelecto
um livro de poemas
um caleidoscópio
um mapa-mundi incompleto

para este momento
a letra mais reta
o movimento do corpo
a palavra coração
entre alvo e seta
Tristes desvarios, os de Minas.

Um rio de lama corre sobre o território Minas. Atinge cidades e vilas. Escorre pelos longes. O rio Muriaé alarga e aprofunda, liberta seu leito. O acidente que aconteceu na primeira quinzena de janeiro deste ano, foi provocado pelo rompimento da barragem da Mineração Rio Pomba Cataguases, instalada em Miraí, na Zona da Mata de Minas a 316 quilômetros de Belo Horizonte. O saldo é devastador dentro e fora de Minas: cerca de 2 milhões de metros cúbicos de rejeitos, que ocupavam uma área equivalentes a 30 campos de futebol, com 10 metros de profundidade cada um; afetou perto de 500 residências em Mirai, em Minas Gerais.. 100 mil pessoas das cidades Laje do Muriaé, São Sebastião do Ubá, Itaperuna, Cardoso Moreira e Italva, no estado do Rio de Janeiro, sem água potável; a empresa, reicedente pela terceira vez em crimes ecológicos com impactos ambientais de grandes proporções, foi interditada e multada em R$ 75 milhões pelo governo mineiro. Em Cataguases Bombeiros procuram um homem que foi levado pela enxurrada.


Ao mesmo tempo em que a população sofre com os danos físicos e morais, emocionais e econômicos, dançam as siglas e as cifras, movimentam-se as pedras do xadrez. O senso de dever, a solidariedade, atravessado por oportunidades e oportunismo faz da catástrofe um ambiente favorável às articulações e conexões as mais variadas. O governo, através de seus órgãos competentes – ou quase sempre incompetentes - , procura fazer o que deve. Faz o que pode. A população fragilizada mobiliza-se. Aprende com o susto que o conhecido aforismo “mineiro só é solidário no câncer”, pode não ser verdadeira, mas funciona sempre em horas de aflição. Os laudos deverão mostrar as causas do acidente e propor soluções geralmente morsas. A empresa criminosa promete “dar um auxílio” para amenizar os sofrimentos mais pungentes e tomar “as medidas cabíveis’ para que outros acidentes não ocorram no futuro”. O mundo, feito um grande rio de corpos sem almas, desumano e contraditório, segue seu caminho. Até quando não se sabe.

Vulcão de lamas

Muriaé transformou-se em um verdadeiro vulcão de lavas resfriadas. Enfezado, mostra seu poder e sua fragilidade. Como todos os rios, têm sede de extensões, porque com o inchaço de seu ventre, o rio já não suporta as afrontas nem a invasão de seus limites. O rio tem fome. Tem sede de homens. De ouro. Sede de ares e de outros rios.Quer vento e sal. Quer salvar-se a qualquer custo. Aliviar-se das dores, dobras e contorções provocadas pela poderosa “inteligência”, pela força brutal de homens ciosos por fatias cada vez maiores. Cansado, o rio, - todos os rios- sofre, luta contra os desmandos e desmazelos de indivíduos inescrupulosos. Quer ter direito a uma vida digna de sua natureza. De sua importância, por menor que ele seja, por mais distante que more.

Sofrimento e aprendizagem

A antiguidade de sua existência deu-lhe realeza de cidadão. Ensinou-lhe a compartilhar águas e vozes. Sons e cantigas conforme fosse seu caminho de pedras, de árvores secas ou de terra macia e argilosa. De nada entende o rio, apesar de sua mítica existência, dos ardis e armadilhas humanas. A natureza exige dele constante e transitória perenidade. Daí que só o vemos correndo, passeante. O mesmo diferente rio de sempre

O tempo ensinou-lhe a dar sua parcela de participação, por menor que seja, para vencer este urgente desafio cósmico: defender todas as formas de vida no Planeta. Devolver ao planeta a alegria, o direito à felicidade. Rio não é pré-moderno, moderno ou pós-moderno. Desliza, desenha seu curso, elabora seu discurso de liberdade e rebeldia por todos os quadrantes da terra. Da Bósnia a Bagdá. Da Irlanda ao Timor.Tanto em chão de Minas, minado e vasto, quanto no Agreste. Seja em Cuba, Venezuela, nos Estados Unidos da América ou no Iraque. Seja em Belo Vale, no Vale do Jequitinhonha ou em Belo Horizonte. Tudo de rio se fere. De febre líquida e incurável.Tudo de rio se faz e se mistura.

Suas fissuras, suas diferenças e indiferenças fluviais não mudam, em quase nada, seu tino de viajante sem pátria, sem bandeiras, sem deuses nem ideologias. Segue desinteressadamente. Aqui ou lá. Aonde quer que seja, quem conhece os mistérios do rio, com ele convive amorosamente.

Permanência necessária

Igual e diferente a todos os rios do mundo todo, bem que o Murié gostaria de descer de manso e cuidadoso, feito o caminhante anônimo que, de soslaio, observa os detalhes do percurso. Saboreia o curso das criaturas ribeirinhas tão singelas e sem recursos. Da saracura. Do socó. Do lambari. Do sapo-boi roncador de águas noturnas. Ou, por um momento, descrever com olhos merejantes, imaginárias figuras desenhadas pelas aves do céu.

Poderia insinuar-se silencioso no fundo dos quintais. Alimentar os pastos. Mover as máquinas Parar em poços de silêncio, quando isto fosse de seu desatino e desejo. Se e rio quisesse, poderia lavar nossas roupas sujas. Nossas insolências e omissões,. em sua casa, sem sacrifícios e mortes Lavaria piedoso nossa culpa diária. Livraria todos nós de nossos pecados públicos e oficias.

Seria melhor se pudesse o rio divertir-se no abismo fascinante das grotas e cachoeiras. Assim, de repente, poderia cirandear no vórtice de vorazes redemoinhos. Poderia compartilhar sua viagem, suas aventuras com os seres humanos que habitam, com sua permissão, o lugar que, há milênios, era só seu. Seu e de todos os outros seres que, sem estudar cálculos ou integrais, sem nem de longe desconfiar-se dos saberes e avanços da bioquímica, da. filosofia, da micro-física ou da bioética, sabem os mistérios do mundo. Todo rio também sabe, por origem e senso, respeitar o território das outras criaturas. Jamais invadiria a morada de outro rio. Desfruta, com naturalidade desinteressada, da pacífica convivência com todos os outros seres;

Paciência bovina

Não seria exagero, pode-se dizer, que todo o rio possui um pouco daquela paciência bovina em dia de missa. Sem cangas nem obrigações leiteiras, só lhe resta viver, pastar. Passar somente. Passar como passa o rio , de minha, de sua , da aldeia de Fernando Pessoa.

Mas em seus dias de ira e de busca de justiça, o rio lambe incestuosas as margens e vazantes. Alaga os baixios indefesos. Não mais afaga quem mergulha seu íntimo com intimidade. Com a consciência e a responsabilidade de quem sabe o que deve e o que pode fazer. Quando se enche de cismas e de iras, o rio avança contrario. Entre furioso e justiceiro, afoga o que encontra pelo frente. Mata animais e plantas. Entope córregos, nascentes e esgotos. Transborda de tristeza e desespero ante a impotência e o pânico das crianças, das mulheres e dos homens.

Em busca da felicidade

Rio Pomba. Mirai. Muriaé. Rio Fubá e Paraíba do Sul. O som das palavras, das letras e leis pode enganar, falsear a realidade. É que lá pelas bandas da Zona da Mata Mineira não mais se ri. Pouco se espera frente a tanta imprecisão. O rio chora as suas vítimas. As perdas de todos nós. O Rio Pomba, ao contrário do que sugere seu nome inscrito no dicionário, não voa. Arrasta-se feito serpente de lama devorando, arrastando tudo: árvores e aves. Bois, galinhas e cavalos. Porco e gente de todas as idades. Nada escapa. À população atingida pela tragédia só resta um consolo: segundo fontes técnicas e autoridades ambientais ‘a lama que o rio vomitou não é tóxica. Com a lama morreram bichos de todas as espécies. Também nós morremos um pouco com os bichos e os homens daquela parte do Estado. Para muitos lá se foram, rio a baixo, as promessas e esperanças de um 2 007 mais feliz. O signo Minas brilha no fundo das águas nervosas. Navega sem mares de cismas e tristes desvarios.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

A nave errante e a falta
de espaço para a palavra

João Evangelista Rodrigues

Esta crônica não deve ultrapassar 3 mil e 500 caracteres e não ultrapassou. Ordens do editor. O leitor tem pressa. Eu até que não! Aonde irá essa gente 4.0. Nem aprecia a paisagem. Aposto que já tem gente com mais pontos.Tenho que respeitar as leis empresariais. O sinal de trânsito. O complexo e complicado código das tramas, transas e transações. Pulo sérias considerações. Sérias para mim e toda uma multidão de viventes do Planeta. Bela nave errante, essa nossa casa.

Ai que...urge ser objetivo. Competitivo.Agressivo com relação ao futuro. Preciso ser trezentos mil, diria o poeta. Se tivesse mais disciplina e me esforçasse um pouco poder-me-ia multiplicar em tantos quantos satisfizessem as veleidades organizacionais. A provisória fortuna de sucesso. Poderia, mas não quero. Quero ser eu mesmo, com nome completo, CPF, carteira de identidade, endereço residencial – casa própria - e conta bancária. É questão de cidadania. Os brasileiros anônimos e anômalos merecemos ser respeitado como gente, independente dos pontos que marcam no violento jogo da vida. Pelo que somos. Não pelo perfil profissional ou pelo que têm. Gente é gente e não adianta vir com tridente! Raivosa ou contritamente. Gente serpente, não é.

Puxa, com este português a clássico. Com esse estilo irônico e com estas frases curtas - e grossas -, não serei selecionado em nenhuma entrevista. Em nenhum concurso literagrário. A moda atual é mais “bacana”. Mais grã-fina. É girar. Surfar. Youtubilizar”. É “giralizar” em inglês, desbrasileiramente. Sem eira nem beira. Sem letras e sem leiras. Com lentes de contato coloridas. Com lenços e documentos. Aos pedaços. Alienadamente. Generalísticamente.

A ordem do dia é saber manipular a parafernália tecnológica. De ponta, até ontem. Depois de amanhã, vira sucata. O celular e você, com suas idéias “involuídas”, “embaçadas”. Outra invenção esnobe.Não, faz parte do linguajar “esperto” da moçada que não consegue enfileirar cinco palavras corretamente. Por exemplo: Cara, não consigo ser feliz! ou, tô fora deste

tranco, mano. . Estas palavras existem? Grita o gerente “stressado” para a secretária eficientíssima em tudo o que faz. Em dúvida, a moça consulta o computador. O bicho dá mil opções. Qual escolher? Bem, deixa pra lá...Tudo fica na mesma. Involuído. De ponta. Por fora, brilho de verniz. A publicidade embrulha o velho com cara de novo e “manda ver”. Pra ser justo, a embalagem tem mais qualidades que o produto vendido. Com uma vantagem: desperta desejos e necessidades. Entra pelos olhos e instala-se no fundo da alma do consumidor.Se é que, além do gordo saldo bancário e do cartão de crédito mais disputado no mundo dos negócios, consumidor tem alma.

Sai dessa, meu Deus, perdoe-me por falar assim tão objetivamente. Santo Aurélio, perdoe-me pelas gírias e outras invencionices lingüísticas, com ou sem fundamentos. Preciso verificar quantos caracteres já escrevi até agora. Nisso, o computador é ótimo. Só você ir ao ícone arquivo. Clicar. Descer o “mouse”. Um rato? E inglês, ainda por cima? Bem no meio do texto. Sai daí trem! Sai demo atrevido, que de ratos os brasileiros já estamos cheios. Ai você clica...larga mão, o resto você sabe. Se não souber, tem que aprender. É uma ordem. Tem que aprender, viu! Pelo bem ou pelo mal.Para o seu próprio bem, viu!

Preciso afiar a tesoura. Cortar.Cortar rente.Na carne das palavras. Decapito algumas com pesar. Já passei da casa dos dois mil, e ainda não disse nada do que queria.
Mas esse editor, este leitor, sei não. Aposto que você entendeu tudo, mesmo sem eu tudo dizer. Entendeu ou não entendeu. Precisa entender. È um imperativo entender o funcionamento do mundo. Do universo das palavras. As leis da natureza e da sociedade. Então, entendeu, né?

O espaço acabou. Não me despeço do leitor. Ufa!, estou exausto de tanto correr. De tanto escrever e cortar. De mais cortar do que escrever. Tudo por causa do editor. Da publicidade que ocupa todos os espaços do jornal. Da preguiça do leitor. Por falar nisso, será que ainda está aqui no texto, comigo ou já saiu do Chat, o “danado”?

A cidade que dorme

João Evangelista Rodrigues


“Despertados, eles dormem”. Este aforismo é de Heráclito, o filósofo grego que primeiro captou o fenômeno da mudança, do movimento e da permanência do Ser, das coisas. Dele é, também, a conhecida metáfora do rio ”ninguém se banha duas vezes no mesmo rio” marca o prelúdio da dialética de Sócrates. Muito mais tarde, o pensamento dialético, em suas vertentes idealista e materialista enriquecem as formas de se ver, interpretar e transformar o mundo. Ma a conversa aqui é outra.

“Despertados, eles dormem”. Esta afirmação permite-nos interrogar, como fizeram outros pensadores: estamos dormindo ou em vigília, diante da realidade que nos rodeia. Poderia ter escrito nos “cerca“. Achei melhor assim, pois, o ser humano deferência de todos os outros seres do planeta – pelo menos do planeta que conhecemos – por o único que pode pensar. Quer dizer que tem consciência do mundo onde habita. Pelo menos um fiozinho de percepção que lhe permite permanecer vivo. Sem grandes vôos, é verdade. Sendo morada da consciência tem condições e dever de agir com responsabilidade. De exercer sua liberdade individual, sem prejudicar outros indivíduos, a sociedade e a espécie da qual faz parte. Mas nem sempre isto acontece. Daí a necessidade de se criarem leis, sistemas de controle e repressão, diríamos, de reeducação daquelas pessoas que não souberam ou não quiseram compreender sua posição no mundo. Será que estamos todos adormecidos, afetados por uma cegueira genética, universal? O Nobel de literatura, José Saramago, escritor português que o diga. Ou será que estamos despertos. Impossibilitados de desfrutar de um sono tranqüilo devido às circunstâncias em que subvive o homem contemporâneo. Eis a questão.

“Despertados, eles dormem”. Empiricamente, agora, mais de meia noite, grande parte dos homens da terra está esticada em seus leitos nobre ou pobre, aquecidos ou congelados. Como pássaros e bichos, o homem tem necessidade de descansar. De adormecer. De ficar como se mortos, para revigorar suas energias e vencer o estresse a que todos estamos submetidos. Também, o senso comum nos fala do turbilhão de carros, buzinas, pernas e cabeças que invadem as avenidas todas as manhã. Cada um para um lado. Para direções diferentes. Indiferente ao destino de quem passa por ele ou nele esbarra involuntariamente. Mesmo nas cidades menores isto já acontece.

Até mesmo o meio rural já sofre com o sintoma da pressa e da pressão da luta pela sobrevivência. Eletrificada e com direito a televisão ele vive sem vier os dramas, as tensões e as grandes tragédias urbanas. Foi-se o tempo em que “ que se amarrava cachorro com lingüiça,”, “ que palavra possuía valor de documento” e que “ a roça dormia com as galinhas”. As preocupações e inseguranças diante de um futuro incerto, pesa sobre a cabeça de todos nós. Em todos as partes da terra. Sendo assim!

“Despertados, eles dormem”. De que sono estará Heráclito falando. Do sono biológico? Do sono da consciência? Do sono dos sentidos, entorpecidos em corpos “malhados” ou em corpos subnutridos. De que sonos dormem todos nós? De que cegueira? E se estamos despertos o que nos mantêm acordados? Ligados com ou sem apoio de ribites. Ilusão. Alienação. De que drogas todos dependemos?

Acordados, vemos o mundo a nossa volta? Compreendemos e compartilhamos, com paixão sincera, nossa compreensão sobre nós mesmos, sobre os outros indivíduos. Sobre a sociedade e nossa espécie? Estamos preocupados em transmitir os outros nosso conhecimento e nossa paixão pelo mundo e pela vida? Estaríamos realmente despertos? Ou somos apenas fantasmas entre fantasmas, como em um jogo de enganos comum coletivo?
Desculpe-me o leitor por tantas interrogações. Às vezes se fazem necessárias, mas prejudicam a elegância da escrita.

A escrita que, como a cidade brilha e confunde. Dorme e se desperta. Permanecem em vigília. Não pense, o leitor, que sou um dos que odeiam o turbilhão e a caótica sinfonia urbana. Sei que a civilização deve muito às cidades. Sei , também, que as megalópoles e metrópoles estão , atualmente, passando por um grave e caótico processo de saturação. De desmoronamento econômico, social, arquitetônico, cultural e moral. Com tudo isto, as cidades continuam cintilando como uma das mais importantes e criavas invenções dos homens.

Espaços de trocas materiais e simbólicas, as cidades podem ser comparadas a labirintos e constelações. Espaço público e lugar de percursos imprevisto e imprevisível. Penso e amo as cidades como galáxias perdidas no cosmos. Apesar dos mapas e sistemas de orientação e controle. Somos todos navegantes. Acordados ou vencidos pelo sono e o cansaço. Com previsões de naufrágios evidentes. Mesmo assim insistimos, resistimos. Buscamos por mares sempre navegados um só objeto de desejos: a felicidade.

Ao longo de sua história o homem sofre, não aprende com seu próprio sofrimento, nem com o sofrimento dos outros, um pequeno trecho que seja, das lições que diariamente o universo nos oferece. Por isso, permanece válido, e para muitos prevalece o aforismo do grego que afirma: “Despertados, eles dormem”. Cai sobre Minas chuvas torrenciais. Rios da lama cobrem campos, vilas e cidades. Chove prozac, coca, individualismo, grana, solidão e morfina. Em várias partes do mundo chovem mísseis. O pesadelo da guerra. A cidade planetária parece acordada.Veloz. Faminta de sonhos e de esperanças. Não para. Acelera. Treme.No entanto, dorme.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007


são paulo

agora não garoa
nem orvalha sobre gota-city
o anjo do apocalipse dança
entre tiros e trovões
a agrura cai gota a gota
ora chuva braba
ora raio e tensão
bala a bala no Estácio
na via Anchieta
estado de guerra
fila e grana
são paulo grita por Mário
mas o mar-rio não responde
implora comando
pede socorro
beijo de cobra boca -a- boca

sampa cobra do santo proteção
utiliza em vão
seu santo nome

usa canoa escada radar
helicóptero e telefone

são paulo caiu do cavalo dentro da noite em chamas

terça-feira, 9 de janeiro de 2007



evocaçaões de domingos

quando eu era pequeno
e era criança o sonho
havia só uma igrejana praça principal
a matriz de Nossa Senhora do Carmo
com seus marcos e sorrisos
com seus santos e acólitos
com suas encomendações
com seus vivos e mortos
com seus rebanhos e convivas
com seus reclamos e avisos


a igreja do Rosár
iocom seus mastros
vivia sozinha
encolhida na Avenida

o domingo cheio de graça vestia roupa nova
ia à missa com a mãe
jogava futebol
nadava
ia ao cinema e ao circo
com os amigos e primos

hoje existem muitos edifícios
muitas comendas e recomendações
muitas igrejas e ofícios
mais que bares e oficinas
em cada bairro e esquina
o sino bate
trina três vezes tristíssisimomo

rá que Deus se multiplicou
ou se esqueceu de acordarnessa manhã de cimento
com seus demônios afônicos
com seus “dôminus” e domínios
com seus sonhos aônimos
com seu pânico
ou a cidade sem deusa
gora sangra de dores comensais
distraídas
aqueada
dividida
pergunta Santa ao menino
suspria a moça de cismas

sobre o que não sabemos

o que sabemos de Kosovo
do Timor
da Serra Leoa
além do horror da guerra
da desumana condição dos homens
das mulheres e crianças
do gafanhoto e da onça
em noites sem lua
o que sabemos de seu povo
de seus desejos e choros
de seus anseios e gritos
de seus corpos no esgoto
de seus nomes e mitos
de sete dias sem gosto
de sua desesperança

além do que no ventre da mídia
engendra o cinismo da imagem
a ausência de carícia
a anorexia dos modelos
a cegueira do mais forte
o jogo de espelhosda notícia sob encomenda
o aborto

o que sabemos de Kosovo
do Timor
da Serra Leoa
em nossa incômoda passividade
em nossa amena gravidade
em nossa cômica liberdade
em nossa inviabilidade crônica
além do que no mapa da desonra
se mata todo o santo dia
além da miragem que se esconde
na hora da ave-maria

os brasileiros estamos em férias
de consciência
estamos sem fome de verdades
estamos à venda
estamos fora de nós
de nossos brios
estamos em coma
estamos sempre em festa
em Gomorra ou em Sodoma

viajar viajar viajar
vigiar jamais
para que vigiar
se tudo entra em sua casa
se o tempo não há mais
se o avião atrasa
se a estrada não presta
se perdemos nossas asas
se o gelo virou brasa
se o porto não tem cais

vamos viajar ao novo
convida um monge sem juízo
alguém desavisado
lembrando-se Drummond
sobre o mapa de Kosovo
não o Kosovo não
é muito longe
vamos então ao Timor
que tal jantar no Sudão
ou declamar um Haikai
lutar sumô no Japão
tomar café no Iraque
dançar quadrilha em Brasília
para aumentar o tesão
aliviar o tumor

que tal a Serra Leoa
seja aqui ou seja lá
o globo perdeu o senso
a compostura
a decência do real
justiça é peça de museu
animal sem pele
mulher de sete olhos
espécime em extinção

seja aqui ou seja lá
o povo vive de missa
à deriva do verso
vive à deveria
de se mesmo
da liturgia obscena
da palavra submissa

seja lá ou seja aqui
seja no mar de Gamboa
sabiá não canta mais
a Aquarela do Brasil
a palmeira não tem folhas
o sonho está às moscas
a vida anda sem graça
olhe o semblante das vacas
até o preguiça voa

seja aqui e seja lá
a história guarda segredos
e o tempo nada novela
do amor do povo em Lisboa

mas que vento é esse que venta e assobia
que entra pela janela
e trás notícias do Kosovo
e alimenta o futuro
se lança na transversia
neste silêncio mais turvo
no ventre do Timor

que vento venta em Serra Leoa

joão evangelista rodrigues
janeiro de 2 007

domingo, 7 de janeiro de 2007


não vim para esclarecer,mas...”

a palavra calma
o som na palha
o sol estático
o ar estético
o galo cego
o tal inferno
o gozo explícito
o tema lírico
o lema ilícito
o tolo sóbrio
o lobo obvio
o bolo tóxico
o anjo surdo
o gato sujo
o belo tudo
a alma seria clara
estrela de cinco pontas
não fosse o verbo ir
não fosse a estrada estreita
se não fosse o Verbo Eterno
a morte solta na encruzilhada
e a noite pra nos confundir



nasci de pedra mágica à beira do abismo
cresci
esculpi de pedra afiada
a letra
a existência
de pedra frágil
filosofal
teci todo o fascínio
toda a secura da vida
desci ao fundo do poço
bebi de água de pedra todo o brilho
a sede de Adélia e de Alice
converti em espelho
a pedra e o lírio
o animal alado que mora em mim
ao estado de pedra bruta
ou marfim
retorno sempre ao Éden imemorial
jardim

tudo passou e não passou
a infância
a infâmia
o filme
o automóvel
o fugaz movimento dos relógios
tudo passou
como se
já não sei bem distinguir
o passado e o devir
já não sei o que sou
se sertão ou só serpente
o futuro está por dentro
por fora de mim
está presente
tudo passou e não passou

mesmo confuso
mesmo inconcluso
urge partir

sábado, 6 de janeiro de 2007


o escrevene é doente
de escrita
escreve com as unhas
com a língua
com a alma
com os dentes
se escreve morre
se não escreve morre
grita a morte grávida
de vida
nada
ninguém socorre
o poeta hiper-escrevente
nem a ponte
nem a torre
nem o porre
nem o leite quente

se escreve morre
se não escreve morre

o escrevente escreve
escreve
escreve
a vida e a morte
salvam-se pela escrita


a língua pátria me manda
a lingua pétria me funde
a língua mátira me ama
a língua rosea me fura
a língua amada me lambe


a língua viva me mata
a língua morta me chama
a língua me deixa à míngua
me vela me venda me ilude
a muitas milhas de mim
outras línguas me procuram




pedra para mim
é pai e pássaro
passagem
pedra é o que sou
alavanca de sol
escudo
lodo e cal
me levanto
quando a chuva cai
escuto
“tu és pedra
e sobre esta pedra ...”
não dormi(na)rás

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007


o peso da ave
no ar


é mais suave
sob o sol espesso
sobre mar aceso



deixo sob pedras
meu segredo
pedras sobre pedras
à sombra do rochedo
sob pedras deixo
a injúria e o medo
o eixo da cidade
seu cruel enredo
antes que cante o galo
ou me apontem o dedo
calo três vezes mais
a traição de Pedro
castas outonais
sob o mesmo fausto
arcos desiguais
cais desassossego
sob falso selo

guardo sob pedras
meu segredo

terça-feira, 2 de janeiro de 2007


maior enigma o tempo a si se move
abissal mistério
fluxo absoluto
ilógico relógio mudo
não cabe em nenhuma sala
em qualquer moldura
passado presente e futuro
o tempo com o tempo se mistura
com o tempo tudo se dissolve
tudo a seu tempo se transfigura