quinta-feira, 15 de junho de 2006

O olhar que caminha


João Evangelista Rodrigues

O título não se quer original. Faz parte do texto “No mundo da leitura: a leitura do mundo”, primeiro capítulo do livro “O jornal como proposta pedagógica”, de Joana Cavalcanti. Não é, nem seria possível ser original em tempos de pós-modernidades, tardias ou não. Paulo Freire já ensinou bastante, com profunda sabedoria, sobre a arte de bem se ler o mundo.
O que há de original neste texto que ora se insinua sobre o vazio que se segue em linhas e signos imprevisíveis é a disposição do leitor em prosseguir na sua leitura. É o momento mesmo em que seus olhos deslizam à procura de algo perdido no tempo, memórias ancestrais, talvez. Terras devolutas, quem sabe. Terrenos baldios, desses atravancados de ferro-velho, caixas de papelão, livros deteriorados, pedaços de canos, restos de carros enferrujados, panelas furadas, todo tipo de rejeito da insaciável oficina de consumo. Desses lugares que só meninos e meninas encapetados, afeitos a molecagens, conseguem ver e explorar. Nesses territórios malditos não se entra de sapato novo e engraxados, de roupa domingueira, branca e alvejada. De grifes exclusivas e excludentes.
Se o leitor se deixar levar pelo prazer do caminho, certamente irá descobrir, pelo desejo e pelo gosto de caminhar, motivos de sobra para continuar sua viagem pelo texto-vida que aqui se estica mundo a fora. Terá rara oportunidade de descobrir e recriar“cores, formas e imagens” , de sentir “cheiros, sons”, de tocar de pele a pele “ texturas” e, se for mais ousado que a média dos mortais, de ler grafismos, gravetos, gramados, garranchos, tudo que sob algum aspecto se assemelha a palavras, ao rastro dos bichos, dos signos na paisagem extensa e infindável. Mais profundas e atraentes, entretanto, são as paisagens humanas. Nem sempre amenas e amorosas. Agrestes e espinhosas, traiçoeiras e abissais muitas vezes. Escorregadias e evasivas, quase sempre. Saber percebê-las e cativá-las é arte para poucos. São mais comuns, nesses jogos, a conquista e o domínio. As gerações mortas já o provaram.
O olhar que caminha desenha percursos os mais diversos, conforme seja seu caminhar ardoroso ou frio. Varia se se desenha em si mesmo, em ritmo de caminhada sossegada em alguma manhã de sol ou no final de uma tarde de verão. Também será diferente se for um olhar solitário ou povoado de companhias amigas e galantes. Faladoras. De cima de uma bicicleta, de dentro de um carro, do trem-de-ferro, no metrô ou de avião, certamente os olhares se mostram diferenciados tanto pela angulação, quanto pela rapidez de seu deslocamento. Cercado pelas águas , de dentro de um barco, os olhos podem colher, aram horizontes e lembranças vickings sob o ondeante azul do céu. Mediatizados ou condicionados pelos óculos, pela lente da máquina fotográfica ou da filmadora, os olhares perscrutam visões e enquadramentos ainda mais diferenciados.Olhares que espiam pelas frestas das janelas ou pelos buracos de fechadura, à moda mineira, por certo herança portuguesa, não merecem tanta consideração.
Produtivos são os olhares ciganos, desses que pousam. Descansam sobre paisagens inacessíveis. Apaixonam-se pelo que divisa entre o permanente e o transitório. Dizem que olhares se parecem com espelhos de água. Há os rasos e lamacentos, os límpidos e profundos. Transparentes. Há olhares misteriosos e vagos. Fisgam. Fingem não ver, para olhar mais dentro e inquisidor.
O olhar que caminha não caminha só. Abre janelas ao vento, de par em par, em sucessões indefinidas, concêntricas. Leve, leva consigo a cultura e a história de seu portador, de sua gente. Mais, carrega dentro de si toda a herança acumulada desde a origem da raça humana. O olhar que caminha não enxerga o mundo tal qual. Percebe-o, apenas, em sutis e vertiginosas representações. São leituras atravessadas por histórias, lutas, guerras, romances, aventuras, descobrimentos, sonhos, projetos, sofrimentos, colonizações. Existem olhares livres e ou colonizados. Livres são os olhares que caminham por caminhos espontaneamente traçados pelo prazer de caminhar. Como diz o poeta “pelo caminho que se faz, caminhando”
O olhar que caminha livremente descobre mundos igualmente livres e lindos. Mundos falidos, lidos a caminho, de ida e volta para a escola, de passagem pelas avenidas da cidade em sossego noturno. Apaziguada em seus afazeres e posses pelas rezas na igreja matriz. Mundos virtualmente lidos e vividos. Mundos de caminhos reais. Leituras mais que decifração dos tristes códigos gravados a ferro e fogo nas páginas dos livros, na pele, no coração dos homens e mulheres, sobreviventes destes tristes trópicos.
O olhar que caminha decifra, inventa, recria e constrói novos mundos. Mira o olhar do tigre e admira a paisagem que nele se reflete. Simplesmente caminha da mesma forma que o tigre e nele se espelha, apesar das bibliotecas e dos livros esquizofrênicos. Desconfie, portanto, de certos livros. O olhar que caminha ama o que lê. Vive o tempo necessário para as leituras possíveis. Caminha solto entre signos ou sobre as florestas incendiadas salta. Aqui o caminhante se insinua em sombras entes de estender seus olhos sobre mapas mais distantes descansam. Estica-se na sala sobre os livros de sua predileção. O mundo da leitura e a leitura do mundo se confundem. Misturam-se a caminho. O olhar brilha.

Nenhum comentário: