sábado, 24 de junho de 2006

PREFÁCIO AO TEXTO NOSSA SENHORA DAS ÁGUAS,
DE JOÃO EVANGELISTA RODIRGUES,
POR ELIZABETH MARIA DOS SANTOS


O homem de fé roga a Nossa Senhora das Águas que o venha fortalecer... e para seus versos encomenda sentimento e magia. Nossa Senhora das Águas o que tem com os versos desse homem... o que tem com a poesia?
Nossa Senhora das Águas, este canto de fé que o poeta João Evangelista Rodrigues mais uma vez nos oferta, propõe e provoca esse encontro: da poesia com as águas, na irmandade que guardam. A extrema poeticidade, a leveza, o manejo lúdico das palavras, são traços singulares do texto do autor e, nesta obra, de modo muito especial, vêm-se associar à temática, confundindo-se ao ritmo, à melodia, à fluidez da água corrente. Nesse ritmo, na melodia insistente das águas, corre um riso/rio/rito de fé, a se reiterar na forma onomatopéica do refrão: “Água é vida e alegria.”
O signo da água, (re)corrente na poética do autor, atesta a estreita relação de quem foi nascido e criado em beira de rio. O desafio do rio – poemas, escrito na década de 70, as canções “ Canção da Lua Nova” e “Ladainha”, em parceria com Rubinho do Vale, entre outras criações, deixam transparente essa ligação natural do poeta com este elemento vital da sobrevivência em nosso planeta – a água.
O texto Nossa Senhora das Águas pode ser visto como reflexo nítido dessa natural ligação. O livro começa a ser produzido em 1998, quando o autor, em suas costumeiras andanças pelas cidades mineiras, estudava o movimento das águas. Dessa aventura, novas buscas e outros encontros vão surgindo. Do contato com a gente simples de Rondônia, do Jequitinhonha, com essa gente que vive, que canta e conta com paixão a terra e o rio, nasce A mutação dos barcos (1989). Aqui, mais uma vez, a água se faz o signo movente, o movimento, o fio corrente da poesia.
O gosto pela oralidade é outro traço marcante do texto de João Evangelista Rodrigues. Os laços estreitos com o imaginário popular, ou esse vínculo com a tradição oral pode ser atribuído, novamente, à vivência do autor com os contadores de “causos”, dos sertões e dos vales por onde andou. E, certamente, ao seu efetivo envolvimento com a cultura popular mineira, que conta com parcerias importantes, como a do músico e compositor Toninho Camargos, a do escritor, compositor e pesquisador da cultura popular Téo Azevedo. Fazem também parcerias com o autor Joacir Ornelas, Zé Baliza e Pereira da Viola, também pesquisadores e representantes da cultura popular. Em Nossa Senhora das Águas, a marca da oralidade é duplamente revelada, pelo espelho de sua própria forma: o cordel.
Como a relação com as águas - fio corrente desde a infância -, marca-se a afinidade do autor com os cordelinhos. Ainda menino, descobriu um baú de poemas de cordel, ao qual rendeu-se encantado. O pavão misterioso e A Princesa Porcina são algumas das relíquias desse baú. A descoberta foi, sem dúvida, um dos importantes motores do interesse do poeta pelo gênero, que aos leitores mineiros já prestigiou com diversas publicações, como A verdadeira história do bandido da cartucheira, Os irmãos Piriá: uma guerra no sertão, A peleja do Jornalista Mineiro pela Viola Afinada, entre outros cordéis, alguns ainda inéditos, como A Brasília do seu Raul, Sonhar não é proibido, As aventuras do Fusquinha Prateado, Tudo isto é Cultura, Natureza e O dia em que o Brasil se Coloriu.
Há quem tenha preconceitos contra o cordel, sob a alegação, muitas vezes, de que se põe numa relação bastante pragmática com o poder. Isso talvez se deva à perspectiva de que, o ritmo e a métrica, que são próprios do cordel, por contribuírem com a fácil memorização, podem funcionar como elementos persuasivos. De fato, composições do gênero são freqüentemente utilizadas em campanhas políticas e no cumprimento de objetivos promocionais. Mas, se é esse o grande pecado desse tipo de literatura que muito se aproxima do povo, que é quem protagoniza seus enredos, há de se prezar sobretudo as reais qualidades do cordel, como o alto poder de comunicabilidade, a capacidade de expressar, com o parentesco que guarda da tradição oral, os conflitos e as temáticas do cotidiano. Há de se considerar a liberdade que os cordelinhos têm para cantar essas temáticas. Liberdade que certamente tem como base a aproximação do gênero com algumas características próprias do jornalismo, como atenção especial aos grandes fatos da humanidade, às tragédias, aos momentos históricos importantes, pautando –se pela atualidade, rapidez e, por que não, por uma certa referencialidade, sem prejuízo, por se tratar de autêntica literatura, da ficção e do imaginário popular.
E, além de haver quem tenha preconceitos contra o cordel, há ainda quem os tenha contra os cordéis mineiros. Assim, ao incluir experimentações do gênero no contexto das Minas Gerais, o poeta esbarra em, pelo menos, duas significativas dificuldades: primeiro, na perspectiva do cordel como literatura menor e, depois, no fato de que esse tipo de composição não é própria de nosso contexto cultural, embora se saiba que Minas guarda uma relação muito forte com a cultura da Bahia e, de maneira geral, com a dos estados do Nordeste, berço do cordel no Brasil. E é a água o elemento que contribui para a firmeza dessa relação, traçada via região norte e nordeste do estado, através dos caminhos de água dos rios Jequitinhonha e São Francisco.
Que, em relação às letras, as nossas Minas tenham reconhecida e respeitada representabilidade na tradição oral, não restam dúvidas. Basta que se mire num dos mais importantes dos nossos cânones, João Guimarães Rosa, para que isso se referende. Mas, curiosamente, o cordel, que nasce na França e, no Brasil, encontra o Nordeste como sua maior referência, não é tradição mineira. Se bem que, se falarmos também em Carlos Drummond de Andrade, com “João e Maria”, podemos até dizer que temos boas representações no gênero.
Apesar disso, o que significa puxar o fio de um cordelinho nessas Minas de cá, senão um ato de ousadia, de irreverência contra as limitações que se impõem? É certamente a consciência desses aspectos que motiva o autor a, quase como a se reparar por se apropriar do gênero, dizer em Nossa Senhora das Águas: “Peço licença ao Nordeste/ do Pernambuco à Bahia/ não estou fazendo teste/ nesta minha alegoria/ só quero cantar ligeiro/ no coração do coqueiro (...).
Que as licenças sejam concedidas, ao poeta, pelos leitores mineiros e por todos aqueles que apreciam a arte do cordel. Que Nossa Senhora das Águas, a mesma que protege as terras e as fontes da Cambuquira, conceda ao nosso poeta, que aqui escreve e recita “do povo a sabedoria”, os desagravos e as graças merecidas. E que, no contingente do gota-a-gota que há de se formar, não nos esqueçamos do mote principal, cuja memorização e prática se torna cada vez mais urgente às graças da Terra: “Água é vida e alegria”.
Não por acaso, a Campanha da Fraternidade deste ano tem como tema este apelo: ”Água, Fonte de Vida”. Intuição, premonição (ou premunição?), sensibilidade, ou seja lá o que for, assim é que se vai tecendo a fala dos poetas: liberta, comprometida com as urgências de seu tempo, carregada de sentidos, de enigmáticas profecias.

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