domingo, 25 de junho de 2006







A cidade Visível
joão evangelista rodrigues

Fascinantes e devoradoras, as cidades são uma espécie de esfinge universal e contemporânea. Labirinto alucinante e misterioso. De um lado, se oferecem à decifração. De outro, trancam-se em sua fome de tempo e de desejos, a exemplo das conchas. Das nozes. Dos rochedos e sarcofres. Em alguns casos, lembram cenário de teatro de tão artificiais e descartáveis. De concreto restam os cemitérios, os templos, os museus, palácios financeiros e fábricas de ódio, de ócio e desolações. Realidade insólita, solitária , às vezes, além das linhas invisíveis da imaginação.

Certas cidades possuem magia irresistível. Há quem se apaixone por suas formas arrojadas e excessivas só de ouvir seu nome. Cidades iguais e diferentes pelo que negam a seus amantes. Delas, guardam-se mapas, máculas, fotografias e recortes de jornais. Decoram-se monumentos e bairros, avenidas e ruelas. Terrenos baldios e ruínas. Geografias insuspeitas em noite branca.

Tudo se passa como se a cidade se erguesse, láctea imponente. Inscrita no corpo de cal de cada um de seus habitantes. Escriturações calcificadas em silêncio na mente e no coração dos homens. Cidades são manhãs de sol, tardes chuvosas. Madrugadas insones, personagens trancados em si mesmos. Ensimesmagens inesquecíveis. Janelas sobre vazios. Horizontes de cimento, irregulares e curvos.

Infinita em sua idêntica pluralidade, uma cidade sempre escapa ao ardil do verbo, à curiosidade circunstancial das mãos. Escapam sempre, de alguma forma, sob algum aspecto. Ângulos inusitados. Inacessíveis e ardentes em sua procura subterrânea.

O olhar urbano é assaltado, a cada instante, por uma multidão de imagens raras, rarefeitas. Saturado do nada ver, o olhar perde sua perspectiva, sua capacidade de instaurar o novo , de discernir seu real objeto de desejo: a verdadeira cidade, espaço de convivência, de criatividade e exercício da cidadania. Cidade em sentido pleno. Com suas ruas e praças, com seus jardins e insetos luminosos.

Uma cidade, não um circo onde se troca o pão de cada dia por muito suor e pouco alumbramento. Não apenas um círculo de influências, de confluências inconvenientes e convencionais. Menos ainda um circuito elétrico - eletrônico - cibernético, cujo acesso depende de chaves, palavras mágicas, senhas e simulações dos diversos tipos de poder. Poder central, centralizador, ordenador de sentimentos, de sonhos e dessentidos. De uma ordem ética e estética preconceituosas e excludentes. De uma lógica ambígua, permissiva e perversa. Velada e violenta.

O olhar do leitor se deleita, turva-se ante a profusão e a velocidade das imagens translúdicas. Figuras em trânsito. Transitórias. Personagens em transe. Mal emergem do fluxo óbvio das coisas ululantes e já se dissipam. Olhar em tumulto. Estigmatizado pelo excesso, pela vacuidade. Olhar urbano. Em branco. Em bandos. Olhar sem dono. Abandonado ao nada, ao caos.

Gestos igualmente terraplenados, , dragados pelo tempo. Desecologizado. Não olhar de dragão, capaz de ir mais fundo, em lâminas, em sua sede de fogo. Em sua fome de pedras e eucalíptos.. De se erguer de cimento, o sonho, a imagem e semelhança da cidade que não se vê. A que em letras e metáforas se se oferece e se multiplica..

Afinal, para quem sabe olhar, uma rua é letra, por menor que seja o pingo de sangue no mapa do planeta. Uma cidade é mais que seu corpo exposto aos rigores cegos do tempo. Aos seus rumores e manifestações.

A cidade que não se vê, esta, é que resiste entre muros de lamentações e arcos de triunfos com suas ruas e ritmos interioríssimos. Esta, a que se oferece a descobertas, a leituras infinitas.

Cidade inaugural, que se faz de memória a metamorfose, às vésperas do Terceiro Milênio. Signo de esperança e de esquecimento. Única e igual a todas as cidades do mundo.



Do livro, " A Oeste das Letras". Ed.Santa Clara - 1997

Um comentário:

Anônimo disse...

Tudo hoje em dia está distante e as pessoas também umas das outras.Há vazio, não há amizade, solidariedade, compaixão, compreensão e amor.
Pelas ruas de uma cidade na escuridão ou mesmo à luz do dia é possível vivermos essa sensação. O que este texto nos mostra muito bem.
Parabéns, João, pela sua sensibilidade e por ser uma pessoa iluminada.

Beijos,